A Pedreira

<div>Uma descida vertiginosa ao fundo da terra no coração do Alentejo, entre escavadoras que recuam e calhaus de 15 toneladas que são içados pelos ares através de gruas, mesmo por cima das nossas cabeças. A visita à pedreira dos irmãos Cochicho, em Vila Viçosa, é uma aventura.</div> <div> </div>
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Não é bem medo. É pavor. Um arrepio na espinha difundido para o resto do corpo, a vertigem a fazer os dedos encolherem-se dentro dos sapatos, e o coração a galopar que nem um doido. A distância entre a terra firme e a fundura de onde se extrai a pedra é tamanha que os homens, vistos de cima, mais não são que minúsculas formigas e as retroescavadoras não passam de brinquedos de criança. Ridículos, ambos, lá em baixo. Parece quase possível fazê-los voar com um sopro ou esmagá-los simplesmente com a mão. Da superfície ao fundo da terra, nesta pedreira dos irmãos Cochicho, em Pardais (Vila Viçosa), distam 160 metros, mais coisa menos coisa. Imagine-se um poço, escavado na vertical, com homens e máquinas lá no fundo. E pedra, claro está. É essa a visão que tem quem se abeira do precipício. Depois há o elevador, que é como quem diz uma caixa de metal suspensa, presa apenas a uma espécie de carril aparafusado à pedra. Tudo tem um aspecto velho, frágil e quebradiço, isto é, dizendo em bom português, tem todo o aspecto de se ir desencabrestar por ali abaixo, esmigalhando os ocupantes sem dó nem piedade. De maneira que a entrada no caixote de ferro é feita com rezas à mistura, pedidos de clemência diversos, um frio no estômago e no fígado e no pâncreas e em tudo o que é víscera, as mãozinhas a agarrar a estrutura de ferro e os olhos fechados com tanto fervor que até as pestanas desaparecem por entre a pele que se comprime. O homem que desce connosco ri-se a bom rir. Diz que o elevador pode ter um aspecto empoeirado mas que é seguro e bem seguro, que nunca caiu nem está para cair, e acrescenta, folgazão, que aquele não é sítio para mulheres, ai não é não.Quando se chega ao fundo, o medo ainda está longe de abrandar. Há um caminho estreito, metálico e ferrugento, agarrado à parede de pedra. Em baixo, o vazio. No fim desse percurso, uma escada feita ponte, toda deformada pelas repetidas passagens de homens. O vão que existe debaixo de cada degrau faz lembrar os filmes em que o herói diz para a mocinha: «Don"t look down!» (Não olhes para baixo!) É bom aprender lições destas nos filmes, o pior é aplicar a teoria à prática. Há qualquer coisa de irresistível em mirar num abismo, mesmo quando se morre de medo de alturas.Por fim, os pés pisam o fundo do poço e a paisagem é tão extraordinária que fica difícil descrever. A chuva dos dias anteriores transformou o chão num mar de lama que não é bem lama, é antes uma massa grossa, como se fosse massa de bolos, que prende os pés e as pernas, obrigando a um esforço hercúleo na caminhada. A dimensão do buraco torna-se impossível de revelar nas fotografias, a menos que haja um homem colocado no sítio certo, para que não se perca a noção de escala. A pequenez humana sobressai em todo o seu esplendor. Seria perfeito se fizessem visitas guiadas. Este era o local perfeito para levar algumas almas carecidas de redimensionamento.Além dos desníveis do solo, produzidos por escavações a diferentes altitudes que perpetuam a sensação de vertigem, há perigos diversos por toda a parte. Escavadoras que recuam, calhaus de 15 toneladas que são içados pelos ares através de gruas, mesmo por cima das nossas cabeças, estrondos medonhos provocados pelos blocos de pedra a pousarem (palavra suave que não condiz com o peso de que se fala) em contentores de aço. O ambiente não podia ser mais inóspito. Frio, sujo, arriscado. Para quem chega é preciso reaprender a andar, os olhos postos em cada ameaça, os pés titubeantes a analisar o terreno. Para quem ali vive, dia após dia após dia, não há sequer lembrança do risco.Narciso Galhardas, 43 anos, trabalha nesta pedreira há 16. Já não aprecia as vistas, nem valoriza as lamas, nem escuta o ruído, nem se atemoriza com o elevador, se bem que já lá apanhou um susto valente: «Um dia, íamos a subir, o elevador vai de cair a pique. Largou de repente e lá foi ele. Lá dentro, havia gente a chorar, a gritar, a rezar. Eu por acaso não chorei. Mas achei que era o fim. Felizmente, quando chegou aí a uns seis, sete metros, parou. Aquilo parece que não mas tem um dispositivo de segurança e funciona!»A informação, apesar de ter um final feliz, era perfeitamente dispensável para quem acabou de descer naquilo e, sobretudo, terá de tornar a subir. Augusto Xavier, 49 anos, não teme o elevador. «Quando aqui cheguei pela primeira vez, sabe como é que a gente descia? Nem lhe digo! Numa cuba içada por uma grua, pelo ar. Eu é que sei o medo que tive. Vim o tempo todo de olhos fechados. Por isso, o elevador para mim é um luxo», garante a sorrir.O pó. O pó é outra das adversidades da pedreira. Há pó de pedra por todo o lado, fininho, quase invisível, mas que começa a invadir todas as cavidades a descoberto, olhos, nariz, boca. Não tarda muito e as mãos têm uma fina camada branca, as páginas do caderno onde se tomam notas estão cobertas e a tinta teima em não se pegar ao papel. A garganta reage à poeira, a boca seca, os olhos incomodam-se e piscam. Os homens tornam a rir. «Isso é falta de hábito. A gente já nem nota. Só no Verão é que é pior.» Sobre esta declaração há quem concorde e quem discorde. Uns dizem que no Verão a pedreira é um inferno.Outros acreditam que o Inverno é pior ainda. Para Narciso Galhardas, os quarenta graus que a pedreira chega a atingir são muito mais difíceis de suportar do que qualquer chuva ou frio. Um outro, que o escuta (e que difícil é escutar o que quer que seja, com tanta máquina que perfura, serra, transporta), abana a cabeça: «Pois para mim este trabalho é muito mais duro com chuva e frio. Com a lama, com as camadas de roupa em cima, que atrapalham. No Verão a gente sempre se protege numa sombra ou dá uma mangueirada para refrescar.» António Ventura Courel, 50 anos, um dos mais velhos da firma, encolhe os ombros, perante as preferências dos outros. Para ele, qualquer estação do ano é ruim, «venha o diabo e escolha».Mais adiante está José Augusto Ventura, 55 anos. Sorridente, bem disposto, fura a pedra com um martelo pneumático que o faz tremer dos pés à cabeça. A sua missão é furar a pedra, na vertical, a ver se encontra o furo que outra máquina já fez, na horizontal. Se as medidas não tiverem sido bem feitas, e um buraco não encontrar o outro, José Augusto terá de começar tudo outra vez. Novas medidas, novo furo feito com a máquina que o estremece por fora e por dentro (alma incluída), oito brocas a perfurar o mármore, cada uma de seu tamanho, cada qual maior que a anterior, uma delas chega a medir 6,40 metros. «Só no fim das oito é que se percebe se chegou lá ou não. Se não... olhe, tenho de começar tudo outra vez. Se gosto? Que remédio!»Há quem fure a pedra, há quem a serre com uma máquina que parte blocos gigantescos com um fio de diamante, constantemente banhado por água, para não aquecer a ponto de quebrar. É preciso orientar o fio, é preciso não descurar a mangueira, é imperioso poupar as mãos e o resto do corpo, que ninguém se quer decepado e toda a pedreira, sem excepção, é propícia ao acidente. Pelos desníveis abruptos, pelas máquinas cortantes, pelas toneladas de pedra que voam por cima das cabeças (cada bloco voador tem 2,90 m de comprimento, 1,60 m de altura, 1,50 m de largura e pesa cerca de vinte toneladas), pelo pó insidioso que é de pedra e entra no corpo (ninguém usa máscara - «isso não dá jeito nenhum, o pó é uma questão de hábito!»), pelas cordas que estão por toda a parte e são convites ao tropeção, pelas escadas que permitem chegar a patamares diversos e que estão apenas encostadas e que parecem seguras apenas pela sorte. À hora do almoço, os homens enfiam-se no elevador e comem, num refeitório, as refeições que trouxeram de casa. «São servidos? Hoje é sopinha de cação!», oferece um dos trabalhadores. Outro, que o escuta, gargalha: «Por aqui é sopinha de grão, feita pela patroa. Está que é uma maravilha!» Fala-se ainda de pedra, por ali, e não é de sopa nem de sesta, é da pedra que a terra dá e dos preços a que pode ser vendido um bloco de mármore, daqueles que voam até à superfície. «Pode valer cinco ou seis mil euros. Uns mais, outros menos. Tudo depende da pedra. Quanto mais concisa, quanto mais inteira, quanto mais uniforme, melhor. Se tiver fios, tonalidades muito diferentes, quebras... vale menos. A cor melhor é o creme, o branco, o rosa.»Na pedreira de Jorge Cochicho trabalham sete homens. A exploração iniciou-se há trinta anos, pela mão do pai Cochicho, falecido no ano que passou e hoje são os dois filhos quem governa o negócio. Diz que a nível de profundidade, a pedreira já chegou ao seu limite. Mais para baixo tudo indica que não há qualidade que justifique a escavação. Agora é avançar em largura. Dali é extraída uma média de trezentos metros cúbicos por mês (cerca de cem blocos por mês). Mas o filho Cochicho lastima-se dos preços crescentes da energia, e do custo crescente da extracção da pedra. A crise, pelos vistos, não poupou os calhaus.A segunda descida do dia já não atemoriza tanto como a primeira, o que prova que o hábito é a principal cura para quase tudo. Do mesmo modo, já não existe aquele espanto do olhar perante a paisagem, diferente de tudo, esmagadora, que torna o homem minúsculo. Os olhos já a viram. Reconhecem-na. Desvalorizam. Seja como for, todos os olhos deveriam pousar, pelo menos uma vez (essa vez que espanta e engrandece quem lá trabalha) na pedreira Cochicho, em Pardais, Vila Viçosa.

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