A Pandemia COVID-19 e a Suécia: mais dúvidas do que certezas
"Comparar maças com laranjas"
(Provérbio da língua inglesa usado para comparar dois itens que são dificilmente comparáveis)
Durante a pandemia COVID-19 assistimos à maior campanha de sempre de vacinação à escala global, estimando-se que, só no primeiro ano, a administração das vacinas tenha salvo cerca de 20 milhões de vidas. Um número impressionante ao qual não é alheia a recomendação de vacinação universal e consensual pelo mundo fora. Não se tendo verificado grandes discrepâncias na recomendação e valorização da vacinação, assistiu-se, contudo, a estratégias substancialmente diversas, em certos países, no campo da recomendação e implementação de medidas de prevenção e controlo da infecção pelo SARS-CoV-2. A avaliação crítica do impacto de tais divergências permite ponderar, configurar e fundamentar um leque de opções para suprir futuras necessidades.
Atento esse objectivo, um dos exemplos mais flagrantes é a Suécia sob a forma das medidas recomendadas pelo seu epidemiologista-chefe Nils Anders Tegnell. Reformado desde Março de 2022 da Agência de Saúde Pública da Suécia, equivalente à nossa Direcção-Geral da Saúde, Anders Tegnell, por alguns considerado um visionário, preconizou uma maior responsabilidade individual na avaliação do risco, desaconselhando, consequentemente, medidas mais restritivas, tais como o encerramento de fronteiras, os confinamentos, o fecho de escolas e a utilização generalizada de máscaras faciais.
É difícil, sem mais, comparar países com culturas, padrões de organização, níveis de literacia, riqueza, geografia e clima díspares. Comparativamente com Portugal, a Suécia tem cerca de 10 milhões de habitantes, mas as semelhanças ficam por aí. A densidade populacional é cerca de 1/5 da portuguesa, a temperatura média anual durante o dia ronda os 10º Celsius, o produto interno bruto per capita ultrapassa o dobro do PIB português, a percentagem de cidadãos com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos que ostentam cursos universitários é cerca de 40% (versus 28% em Portugal) e em quase metade das habitações na Suécia reside apenas uma pessoa.
É possível, não obstante, executar a referida comparação utilizando métricas ajustadas e/ou países semelhantes (como os restantes países da Escandinávia, isto é, a Noruega e a Dinamarca) e no caso da Suécia é imperativo pela possibilidade de aprendizagem. Vejamos, então, alguns dados suecos relativos às medidas de contenção da pandemia, à mortalidade e ao impacto económico.
Foi publicado a 22 de Março de 2022, na revista Humanities and Social Sciences Communications (do grupo Nature) o artigo Evaluation of science advice during the COVID-19 pandemic in Sweden que inclui vários autores suecos, dos quais o primeiro autor é investigador do prestigiado Instituto Karolinska. O artigo procede a uma evolução cronológica da situação vivida na Suécia contendo afirmações que nos devem fazer pensar e questionar o suposto "milagre sueco". Apurou o artigo, entre outras coisas, que (i) a Suécia estava bem equipada e preparada para enfrentar a pandemia, com um elevado nível de literacia na população e de confiança nas autoridades (ii) a população sueca não recebeu informação elementar, nomeadamente, quanto à transmissão por via aérea do SARS-CoV-2, à possibilidade de os assintomáticos poderem ser fonte de contágio e ao facto de a máscara facial proteger o próprio e os outros; (iii) as recomendações do seu epidemiologista-chefe actuariam, supostamente, com base em mera responsabilidade individual, sem qualquer tipo de sanções em caso de ausência de cumprimento; (iv) ao longo de 2020 a Suécia teve taxas de mortalidade por COVID-19 dez vezes mais elevadas do que a vizinha Noruega; (v) muitos idosos receberam morfina em vez de oxigénio, o que acelerou a sua morte, e muitas crianças ainda sofrem de Long Covid, algumas perderam um ou os dois pais e várias faleceram.
Declaram os autores, em sede de conclusões, que se a Suécia pretende fazer melhor em futuras pandemias deve restabelecer o método científico para fundamentação da estratégia, propondo ainda a execução de um processo de auto-avaliação sobre a cultura política, incluindo a ausência de responsabilidade dos decisores pelo fracasso (e não milagre) sueco - fracasso esse que foi reconhecido por Sua Majestade o Rei da Suécia, Carlos Gustavo, no seu discurso de Natal de 21 de Dezembro de 2020.
Na mesma senda, dados recentes disponibilizados pelo Our World in Data revelam um excesso cumulativo de mortalidade por todas as causas desde Janeiro de 2020 de mais 5% na Suécia. Trata-se de um valor inferior ao excesso de mortalidade ocorrido em Portugal (de 9%), consistindo, porém, no pior valor entre os países escandinavos (com 2% na Dinamarca e 4% na Noruega), sendo também mais elevado que o valor de outros países, tais com a Nova Zelândia (menos 1%) e Taiwan (mais 3%).
De realçar que o excesso de mortalidade cumulativa por todas as causas desde Janeiro de 2020 na Suécia é igual ao da Alemanha e da Finlândia (+5%) e inferior ao da França (+6%), dos Países Baixos (+8%), do Reino Unido (+10%), da Espanha (+11%) e dos Estados Unidos da América (EUA) (+14%).
Estes valores poderão sofrer pequenos ajustes porque as datas do registo da mortalidade não são iguais em todos os países.
Finalmente, um artigo do Journal of Global Health, de Agosto de 2022, intitulado Coronavirus pandemic in the Nordic countries: Health policy and economy trade-off redigido por investigadores maioritariamente da Universidade de Michigan nos EUA, avalia o impacto económico das medidas de combate à pandemia nos 5 países nórdicos, a Dinamarca, a Finlândia, a Islândia, a Noruega e a Suécia. A conclusão não podia ser mais esclarecedora: "Não existiram trocas entre políticas de saúde e a economia durante a pandemia COVID-19 nos países nórdicos. A resposta de saúde pública relaxada e atrasada da Suécia não trouxe benefícios económicos no curto prazo, embora tenha conduzido a uma desproporção de hospitalizações e mortes por COVID-19".
A resposta da Suécia à pandemia gerou mais dúvidas que certezas, daí a necessidade de elaboração de novos estudos por entidades científicas, idóneas e fidedignas, na senda dos estudos acima referidos, também eles de elevada qualidade. Há que clarificar as dúvidas emergentes sem esquecer que o esclarecimento cabal da resposta sueca à pandemia é uma tarefa exclusiva da ciência e não, seguramente, de quem se encontra nos seus antípodas, até porque quem não tem capacidade de admitir dúvidas nunca terá capacidade de fazer ciência, alimentada que é pela incerteza que faz parte da metodologia científica.
Nota: Os autores não escrevem de acordo com o novo acordo ortográfico.
Filipe Froes é Pneumologista, Consultor da DGS, Ex-Coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Médicos e Membro do Conselho Nacional de Saúde Pública
Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge