Caiu que nem bomba. Após décadas de afanosas buscas, os voyeurs de todo o mundo podem enfim sossegar: descobriu-se a identidade da senhora que deu corpo ao famoso quadro de Courbet, tela escandalosamente exposta no Museu d"Orsay à vista desarmada, qual Mapplethorpe avant la lettre..Ao editar a correspondência entre George Sand e Alexandre Dumas filho, o escritor Claude Schopp deparou com uma carta datada de 1871, ano da Comuna, em que o autor da Dama das Camélias falava do retrato da "interview de Mlle. Queniault de l"Opéra, para o Turco que aí se abrigava de tempos a tempos". Observando melhor a caligrafia de Dumas filho, Schopp detectou no original que a palavra correcta não era "interview" mas "intérieur" e a descoberta das partes internas da senhorita Quéniaux, onde o Turco se alojava periodicamente, teve para ele o efeito de "uma iluminação", como se apressou a dizer à imprensa, sempre ávida de porcaria. Desfez-se um mistério com 150 anos, durante os quais tinham sido apontadas, sem argumentos convincentes, outras candidatas ao lugar de modelo de L"Origine du Monde, como a amante irlandesa de Courbet, imortalizada em várias telas de impecável realismo. Ponto curioso: se tudo isto se passasse com alguém vivo era uma devassa inaceitável, uma intrusão abjecta na privacidade alheia, caso para alarido e muito #MeToo; estando a Quéniaux morta e bem morta, sem possibilidade de réplica ou defesa, revelar-lhe as intimidades é um acto de "cultura", uma "investigação histórica". Adiante. Após ter feito a sua sensacional descoberta, Schopp relatou-a num livrinho saído há um par de semanas, onde descreve tudo, mas absolutamente tudo, o que é possível saber hoje sobre a vida de Constance Adolphine Quéniaux, que viu a luz às nove da manhã do dia 11 de Julho de 1832 e faleceu às cinco da madrugada de 7 de Abril de 1908. Durante 75 anos de existência terrena, Constance permaneceu celibatária, mas fez um percurso notável entre a casa de Saint-Quentin onde nasceu, filha de uma costureira analfabeta e de pai incógnito, e o nº 20 da rue Royale, onde morreu no conforto da paz burguesa. Meticulosamente elaborado, várias vezes alterado, o testamento mostra que acumulara uma fortuna considerável, a par de uma infinidade de objectos - jóias, quadros, porcelanas de Saxe, casacos de peles, serviços de mesa - que embelezavam a sua casa de Paris e a moradia que comprara na elegante praia de Cabourg, com water-closet, um modernismo inglês, e vista para o Canal da Mancha. Deixou tudo à criadagem, quis ser sepultada como sua mãe, sem flores nem coroas, discretamente. O último quartel da sua existência foi dedicado a obras de caridade, sendo benemérita destacada do Orphelinat des Arts, uma ONG que tinha por missão cuidar da educação dos filhos dos artistas, que bem precisam. Constance também fora artista, bailarina da Ópera de Paris, onde se iniciou aos catorze anos, pela mão materna. Teve aí uma ou outra actuação memorável, a ponto de um crítico mais entusiasmado escrever no Figaro que ela era tão diáfana em palco que a sua maior dificuldade não consistia em elevar-se no ar mas em regressar ao solo. Contudo, não foi decerto com o salário de bailarina - à época, igual ao de um pedreiro de Paris - que Mlle. Quéniaux enriqueceu e, sempre atenta, começou a comprar objectos de arte quando ainda dançava na Ópera. A sua carreira artística foi interrompida de súbito em 1859, aos 27 anos, provavelmente devido a uma lesão muscular grave, como o certifica um atestado passado por um médico de apelido Putel. O quadro de Courbet foi pintado anos depois, em 1866, em resultado de uma encomenda muito específica - e, já agora, muito libidinosa - de Khalil-Bey, o turco que, segundo Dumas filho, se hospedava regularmente no interior de Constance Quéniaux. Antes disso, já a cortesã havia sido retratada pelos maiores fotógrafos do Segundo Império, como Nadar ou Disdéri, e as suas idas ocasionais aos teatros eram noticiadas na imprensa mundana. Quando Khalil chega a Paris, em Junho de 1865, Constance não era uma desconhecida; antes, durante e depois dele, teve certamente outros patronos e amantes. Vindo de São Petersburgo, onde servira como embaixador da Sublime Porta, Khalil-Bey desagua na Cidade-Luz em grande estilo, com os jornais a classificarem-no como "um dos homens mais espirituais que o Oriente nos enviou". Instala-se num apartamento soberbo, rapidamente forma uma magnífica colecção de pintura - mais de oitenta telas de Delacroix, Ingres, Courbet, etc. -, num ápice fazem-no sócio do Jockey Club, um círculo selecto de cavalheiros afortunados que, não por acaso, possuía uma passagem secreta para a Ópera, tendo os membros do clube o privilégio lúbrico de poder assistir aos ensaios das ninfas dançantes para com elas travar conhecimento próximo - de resto, o que ambas as partes almejavam, de comum acordo. No convívio com a altíssima roda do Tout-Paris, o turco endivida-se ao jogo, perdidamente, compra uma equipa de cavalos de corrida, mantém várias mascotes femininas, uma das quais partilhada com Dumas júnior: Marie-Anne Detourbay, futura condessa de Loynes, a célebre Dama das Violetas, que também foi apontada como modelo de Courbet para o quadro que Khalil-Bey guardava na sua sala de jantar, tapado por uma tela, longe de olhares indiscretos. A Origem do Mundo só era mostrada a uns poucos eleitos, que a saboreavam detidamente, após a comezaina e os charutos..De todas as personagens desta história, foi Constance quem se deu melhor, ou menos mal. Preso pelo seu envolvimento na Comuna, Gustave Courbet exilou-se na Suíça, onde morreu aos 58 anos, com o fígado desfeito pelo álcool. O turco Khalil abriu falência, teve de despachar os quadros e os cavalos de raça, regressou esfolado a Constantinopla, e aí faleceu em 1879. A Origem do Mundo andou de mão em mão, foi guardada num cofre durante a 2ª Guerra, saqueada pelos russos em 1945, acabando por desembocar no escritório de Jacques Lacan; por morte do psicanalista, os herdeiros cederam-na ao Estado francês em pagamento dos impostos sucessórios - e por isso o óleo pornográfico lá está hoje, à vista de todos, para exame estético ou ginecológico, na sala 20 do Museu d"Orsay..Quanto a Constance, teve a inteligência suficiente para impedir que o seu esplendor de cortesã não decaísse em miséria, como acontecia a muitas biches ou demi-mondaines, suas colegas de ofício. Entre elas, Marie Dupleiss, que inspirou a Gautier da Dama das Camélias, de Dumas filho: morreu tuberculosa aos 23 anos, na mais completa indigência. Entre as "grandes impuras", como lhes chamou o Figaro, Constance Adolphine Quéniaux destacou-se pela sua prudência e reserva. Foi isso que lhe permitiu fintar o destino, vencer a cruel sina que devastou centenas de mulheres, a que hoje muitos não hesitariam apodar de "prostitutas de luxo". À época, quando Las Vegas nem sequer existia, a cruel sina das cortesãs de Paris era a morte na flor da idade, descrita em tons carregados por Balzac ou Zola. Nana faleceu jovem, coberta de pústulas de varíola..Desconhece-se o local onde Constance terá posado para Courbet, sabendo-se apenas que o fez no Verão de 1866, no mesmo ano em que o pintor a usou como modelo para outra tela, Le Sommeil, igualmente sob encomenda de Khalil-Bey. Depois disso, e sem que se saiba a identidade dos seus mecenas, Mlle. Quéniaux entra na pré-reforma: dedica-se à caridade, assiste às peças da Comédie-Française, leva uma existência resguardada, administrando o património e o ócio na companhia de meia-dúzia de amigas, de uma criada de quarto, uma cozinheira, um fiel cocheiro. Os registos mostram também que comprou uma campa para si e para a mãe no cemitério de Montmartre, e a Villa des Fraises em Cabourg, cujo jardim tratava com desvelo e carinho. Com o sereno amor que lhe faltou nos homens..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.