A ONU no purgatório 

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Na semana mais mediática das Nações Unidas, que acontece todos os anos na segunda quinzena do mês de setembro, é oportuno relembrar a frase proferida no discurso do então secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammarskjöld, em 1954, que, aliás, foi condecorado a título póstumo, com o Prémio Nobel da Paz, em 1961: "A ONU não foi criada para levar as pessoas ao paraíso, mas para salvar a Humanidade do inferno."

Pois é exatamente onde se encontra a ONU: no purgatório. Talvez por perceberem essa circunstância, alguns dos líderes mundiais decidiram faltar à 78.ª Assembleia-Geral. O presidente Macron desfilou na Champs Elysées ao lado do rei Carlos III. Rishi Sunak declinou a sua estreia em Nova Iorque e preferiu anunciar, a partir Londres, o adiamento de algumas metas climáticas acordadas em Glasgow, na COP26. A Rússia fez-se representar pelo seu experiente MNE, Sergey Lavrov, que conhece bem os quatro cantos da casa, enquanto Vladimir Putin recebia a visita do MNE chinês, fortalecendo cada vez mais a relação sino-russa, que culminou com o convite, prontamente aceite, de uma visita de Estado a Pequim, já em outubro. Ou seja, o único membro permanente do Conselho de Segurança presente ao mais alto nível foi o presidente Biden, por razões óbvias.

A reforma do Conselho de Segurança é um tema que se arrasta há décadas nos corredores da Assembleia-Geral e, volta e meia, os putativos candidatos a um assento assumem o seu proto-estatuto no referido evento anual, designadamente: Brasil, Índia, África do Sul, Alemanha e Japão.

Ora bem, o braço-de-ferro geopolítico e geoeconómico, num período crítico e cada vez mais perigoso, vai-se acirrando, agora com um novo ator, o "Sul Global", a ganhar músculo para poder correr na pista principal. Na última cimeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), realizada em agosto, foi aprovada a entrada de novos membros em 2024: Argentina, Egito, Irão, Arábia Saudita, Etiópia e Emirados Árabes Unidos.

A União Europeia, com os seus 27 Estados-membros, só tem a França no Conselho de Segurança, após o traumático Brexit. Poderá recuperar mais uma vaga, se a Alemanha conseguir uma cadeira. No caso dos BRICS, todos os atuais membros teriam assento. A pergunta que não se cala: aumentar o número de Estados com poder de veto, nesta nova arquitetura geopolítica, reativará o funcionamento daquele órgão ou acentuará a sua paralisação? Conseguirá a AG acionar o suposto poder, que para alguns detém de, por maioria qualificada, retirar o poder de veto a um dos membros?

Não há dúvidas de que a Carta de São Francisco está desacreditada, sobretudo após o duro golpe que sofreu por um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. A questão premente é a de saber se haverá como salvar o tratado em vigor há quase oito décadas, com pernas para andar. Se a resposta for negativa, a nova Carta será assinada em Bucha ou em São Petersburgo?

A palavra, o verdadeiro poder que António Guterres possui, foi muito bem articulada na abertura dos debates da 78.ª Assembleia-Geral, e na Sessão Especial do Conselho de Segurança, realizada no dia 20, com um discurso forte, corajoso e assertivo, clamando pelo respeito da Carta das Nações Unidas e do Direito Internacional, pela retoma dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e pelo alerta ao cumprimento das metas do Acordo de Paris, afirmando o secretário-geral, neste último ponto, que a crise climática já abriu as portas do Inferno.

É urgente encontrar um caminho para salvar a Humanidade, não com a ambição de alcançar o paraíso, mas pelo menos a de conseguir manter a Comunidade Internacional no purgatório, a espiar as suas culpas... que não são poucas!

Professora Associada da Universidade Europeia

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