"Até me esqueci do Natal. Quando aqui entrei só gritava, entrava em casa e saía. Até me esqueci da menina. Isto nem nos meus sonhos.".Sofia Cristina fala depressa. Quer mostrar a casa nova, nas Paivas (Seixal) e o seu rosto é o espelho da felicidade, com um sorriso de orelha a orelha. É uma das 187 pessoas que, a 17 de dezembro, deixaram a torre 10 do Bairro de Vale de Chícharos - mais conhecido por Bairro da Jamaica -, um grupo de nove prédios inacabados mas ocupados há mais de duas décadas..As torres, como aquela de onde Sofia acaba de sair, estão todas em tijolo. A fama do bairro resulta da sua ligação à criminalidade, ao tráfico. Ali quase ninguém passa de propósito. Só mesmo os cerca de mil moradores, alguns descendentes de famílias que ocuparam as casas que um empreiteiro deixou por concluir nos anos 1990..O realojamento, em várias casas espalhadas pelo concelho, vai implicar um investimento de 15 milhões de euros, sendo cerca de oito milhões da responsabilidade da autarquia. E as rendas anunciadas, com valores médios entre os cem e os 150 euros, estão a inundar a câmara de pedidos. Nos últimos tempos, até pessoas com residência em Londres, e que se passeiam pelo bairro em carros com matrículas inglesas, têm aparecido nos serviços municipais a pedir casa..Filme mostra um bairro desconhecido a António Costa.O primeiro-ministro esteve no Bairro da Jamaica no dia 21 de dezembro, para assistir ao último dia da primeira fase de realojamento, em que ficou concluída a mudança de 64 das 237 famílias já sinalizadas. Na ocasião, António Costa confessou que nada sabia sobre o bairro até ter visto o filme São Jorge, parcialmente filmado no local. O filme conta a história aficionada da luta pela sobrevivência de um pugilista, protagonizado por Nuno Lopes, durante os anos da intervenção externa da troika em Portugal, e valeu ao ator o prémio especial de melhor ator da secção Orizzonti do Festival de Veneza..Se o filme deixou Costa "impressionado" com a falta de condições de vida dos moradores do bairro, naquele dia o governante viu ao vivo os prédios sem pintura, com buracos na parede mal tapados por onde entra o frio, baratas e outros bichos, e com as parabólicas de serviço de televisão por todo o lado. E assistiu ao início da demolição da torre maior do bairro, a tal com o número 10..Na realidade, António Costa assistiu aos únicos trabalhos feitos até agora nesse edifício. É que a intervenção está parada depois de a empresa dona dos terrenos, a Urbangol, ter colocado uma ação em tribunal alegando que nunca a Câmara do Seixal lhe deu os terrenos que adquiriu numa hasta pública no ano 2000 e que por isso não lhe podem ser imputados os custos da demolição e a obrigação de a fazer..Por isso, em redor do edifício, que começou a ser destruído andar a andar, está uma vedação e uma empresa de segurança faz vigilância 24 horas por dia para evitar que alguém se sinta tentado, novamente, a fazer do prédio a sua habitação..Limpeza, espaço. Um sonho.De Sofia já sabemos que está "no paraíso" e voltaremos a esta mãe de três crianças, uma delas a tentar trilhar o caminho do futebol. Já Maria da Luz está a caminho do sonho. À família desta são-tomense que viveu 20 anos no Jamaica foi dada a chave de uma casa com cinco quartos e uma sala que faz de estar e de jantar. O apartamento foi remodelado - a especificidade da opção da autarquia passa por, em conjunto com a Santa Casa da Misericórdia do Seixal, comprar apartamentos devolutos, recuperá-los e depois colocar as pessoas nessas casas - e não há comparação com a realidade vivida até dezembro..Aqui Maria da Luz pode receber alguns dos seis filhos - tem um outro em São Tomé - e os netos. Mas a casa ainda não está como ela quer. "Devagarinho vamos lá chegar. Gosto de entrar e ver tudo limpo, mesmo que não tenha muitos móveis. Na primeira semana, nem para comer parava. O meu marido chegava do trabalho e dizia que ia deitar os baldes de água fora", conta com um sorriso..E o orgulho na limpeza estende-se à casa. Quer que se visite todas as assoalhadas, a sala onde uma das netas está deitada com febre, a cozinha..Nem todos os filhos de Maria da Luz moram com ela, uma já comprou um apartamento e outra está a tentar, mas ela e o marido (que trabalha na construção naval) ainda são o suporte de quase todos. Para já, além de querer tudo muito bem limpo, tem um outro objetivo: conseguir um trabalho. "Tomo conta dos netos, é um grande trabalho, mas gosto de me levantar, sair e ir trabalhar. Não gosto de ficar em casa sentada", frisa.."O novo ambiente é fixe".Maria da Luz saiu do Jamaica, mas não diz mal do bairro. "Complicado não eram as pessoas que lá viviam. Complicado eram as pessoas que iam de fora. Faziam escândalos, iam-se embora e a fama ficava com o Jamaica", recorda..Foram duas décadas de vida nesta zona do Seixal - "vim para cá em 1999" -, um bairro para onde o marido a levou e no qual não acreditava que ia ficar. "O pai dos meus filhos ficou doente e veio a Portugal a uma junta médica. Veio para Lisboa e depois conheceu um amigo que morava no Bairro da Jamaica e puxou-o para lá. Quando conseguiu trabalho, ele chamou-me e eu quando cheguei pensei que ia me ia levar para as obras. Ele disse que não, que era para uma casa. Nem mosaico havia no chão. Depois demos um jeitinho. Não foi bom, com os miúdos a crescer", conta, não esquecendo a ajuda que mais tarde recebeu das técnicas da câmara que a ajudaram na legalização..Durante todos estes anos diz que a saída do bairro nunca foi uma grande hipótese. "Tentei sair de lá, mas primeiro gostaria de que os meus filhos tivessem a vida deles. Vivíamos num bairro onde era tudo à borla [não pagavam renda, água, luz], mas também a vida não pode ser só facilidades. Mas, com os miúdos, uma renda, água e luz não conseguíamos.".Agora, elogia a nova casa, apesar de algumas queixas sobre alguns acabamentos que faz à técnica da autarquia que há anos a acompanha, e garante: "O novo ambiente é fixe.".Uma vida diferente, num sítio diferente, mas a mesma discrição, garante. Ainda não conhece os vizinhos - "passo a vida em casa, só saio para comprar alguma coisa" -, mas já sabe que as regras de convivência são diferentes e tem a noção disso.."Este Natal foi diferente, não fiz a árvore de Natal porque foi tudo em cima da hora, fiquei triste pela minha netinha", diz, para a seguir contar que a família "se esticou".."Juntámos a família, fizemos um jantar, só que com todo o mundo junto foi um barulhaço destes meus netos, com corridas em casa, portas a bater. Mas antes das 21.00 já estava tudo despachado", garantiu..Mas também não sabia no dia em que o DN a visitou o que acharam os vizinhos, pois não os conhece. "Não vejo ninguém, nem nas escadas. Mesmo no Jamaica pouca gente me conhecia. Só quando trabalhei na loja do chinês é que muita gente ficou a saber o meu nome.".Queixa-se das dores - "já tenho 50 anos" -, mas aceita-as recorrendo à fé: "Se Jesus sofreu, nós também temos de sofrer." Além de manter a "esperança" de encontrar um trabalho para sair de casa todos os dias.."Agradecer a Deus. À malta toda".Regressemos agora a Sofia Cristina e à sua felicidade por estar numa casa onde não tem de lidar com um dos perigos do Bairro da Jamaica: as baratas.."Vivi lá mais ou menos 12 anos e agora tenho esta casinha que é muito boa, graças a Deus", atira mal se entra no apartamento de três quartos. Sofia não esconde a felicidade, o rosto "ilumina-se" quando se fala da antiga casa e se compara com a nova e não para de falar, ao mesmo tempo que quer mostrar os quartos e até o roupeiro: "veja só", e abre as portas do guarda-roupa que está no hall.."Estou muito feliz. A vida lá era muito complicada. Fui para lá viver quando fiquei viúva e fui para casa de uma amiga, depois conheci o pai dos meus filhos e fiquei mesmo lá", conta, mas sem saudades. "Lá ia-se sobrevivendo. Muita humidade, as baratas andavam por ali.".Agora é diferente: "A limpeza é outra. Só o prédio, a gente entra lá em baixo e sente-se o cheiro do prédio [no átrio e pelas escadas há vasos de plantas]. Aquilo lá não era assim, atiravam sacos do lixo." Assim, nessa comparação, diz estar "no paraíso. Estamos todos felizes"..O "todos" aqui é Sofia, o marido (montador de andaimes) e os três filhos. Destes, dois andam na escola e a pequena de três anos corre pela casa com a chucha na boca e vai-se atirando para cima de um colchão numa das assoalhadas. "É uma vida nova. Estou mesmo muito feliz, tenho de agradecer a Deus, à malta toda [CMS e Misericórdia]", vai repetindo..Uma vida que começou antes do Natal - "nem me lembrei, nem me lembrei quando fazia a comida, entrámos aqui a 17 [dezembro] e uma semana depois era Natal" - e que ainda via demorar a ficar completa, pois a casa precisa do toque familiar. "Vamos construindo, hoje arranjamos um quarto e está tudo arrumadinho, tem chão, mesmo as mobílias vão chegando e vamos montando devagar", garante com orgulho. E a cozinha "é grande" e tem até um aparelho de que não se lembrava do nome: o exaustor..O mesmo orgulho que mostra quando fala das medalhas que estão penduradas no hall. São do filho de 12 anos, que "joga futebol no Benfica. Ele é guarda-redes e já vai jogar lá fora. Eles vão buscá-lo à escola, levam-no ao treino e depois trazem-no a casa"..Já para o mais velho, o destino, em princípio, será menos ligado ao desporto. "Tem 18 anos, vai sair da escola, não aprende, portanto vai trabalhar. Tem de se adaptar à vida", diz Sofia Cristina..Que quando tiver a filha na cresce tem como objetivo ir procurar trabalho. É a fase seguinte do plano de vida desta mulher de 40 anos que começou no dia em que entrou nesta casa. "Só gritava. Entrava e saía. Isto nem nos meus sonhos", vai recordando enquanto pergunta a razão de tanta fotografia. "Veja lá o que faz com isso [as fotos]", desafia com o seu ar alegre..Nova estratégia de realojamento.Estes casos positivos da política de realojamento seguida pela Câmara do Seixal - segundo foi noticiado, apenas numas situações se registaram queixas de um agregado familiar devido ao barulho - foram destacados pelo primeiro-ministro António Costa quando visitou o bairro no mês passado, apontando-a como um exemplo a seguir..E que opção foi essa? A autarquia, a Santa Casa da Misericórdia do Seixal e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) assinaram um protocolo para realojar 234 famílias em casas a comprar pela Santa Casa com o financiamento da câmara..Assim, ao contrário do que acontecia com os Planos Especiais de Realojamento em que se criavam bairros para colocar as pessoas que saíam de habitações degradadas, o que está a acontecer é que as famílias identificadas vão mudar-se para apartamentos que estavam devolutos no concelho..Um processo que tem um investimento total previsto de 15 milhões de euros - no caso das 64 famílias (187 pessoas) do Bairro da Jamaica, à autarquia coube perto de dois milhões e ao IHRU um milhão e seiscentos mil euros.."Já tivemos um realojamento que se iniciou com o programa PER em 1993 e terminou em 2001. Infelizmente, este tipo de realojamento resolve um problema mas cria outro. A câmara sempre pensou que construir bairros, retirar as pessoas de um lado e colocá-las no outro não resolveria os nossos problemas. Ou seja, resolvia o da habitação, mas criava problemas sociais diferentes", explicou ao DN Manuela Calado, vereadora com os pelouros da educação, desenvolvimento social, juventude e gestão urbanística no Seixal..Que adianta ter este projeto sido amadurecido durante muito tempo. "Começou a pensar-se que seria importante que quando as pessoas fossem realojadas não o fossem num único sítio, mas que pudessem ser integradas na comunidade. E como se faz essa integração? É colocando as pessoas aleatoriamente no concelho. Essa ideia foi amadurecendo, fomos construindo a estratégia e fomos apresentando e, quando digo apresentando, foi ao longo do tempo - passaram ministros, secretários, presidentes do IHRU mas nunca ninguém se sentou em conjunto com a câmara, olhou para aquela estratégia." Só em 2017, com a criação da Secretaria de Estado da Habitação, os responsáveis autárquicos conseguiram apoios para mudar a lógica de realojamento.."A 19 de janeiro de 2018 [depois de assinado um protocolo com a Santa Casa e o IHRU] reunimo-nos com as famílias para lhes dizer que o projeto ia para frente", conta Manuela Calado..Agora vão avançando as restantes fases de realojamento do Bairro da Jamaica - no total sairão dali cerca de mil pessoas - e começa a pensar-se na intervenção em outro bairro do Seixal: o de Santa Marta de Corroios..Querer casa e já viver em outro lado.Para o espaço agora ocupado com os prédios inacabados está aprovado um plano de pormenor que prevê habitação e espaços verdes. Um desenvolvimento que vai ter de esperar devido ao contencioso que opõe a autarquia à empresa Urbangol, que apresentou uma ação em tribunal para suspender a demolição da Torre 10, o que aconteceu.."Estamos a preparar uma resposta e depois vamos aguardar o que o tribunal nos vai dizer. Até lá, a demolição está parada, mas os trabalhos para os realojamentos seguintes não, pois uma coisa não implica a outra. A demolição do prédio tem que ver com a ocupação. Se não fosse demolido, tínhamos mais pessoas a dizer que viviam lá", frisa a autarca..Uma tentativa de conseguir uma casa para a qual a câmara diz estar preparada. "Há sempre os oportunistas. Mas nós cruzámos os dados que tínhamos desde há alguns anos com as declarações que as pessoas tiveram de entregar e chegámos à conclusão de que havia quem pedisse realojamento e tivesse casa em outro sítio", conta..Como confirmou o DN numa passagem pelo bairro: uma pessoa que está identificada pelos técnicos da autarquia como morando em Inglaterra, o carro que conduzia quando passou por nós tinha matrícula desse país, regressou ao Seixal nas últimas semanas para reivindicar um apartamento.