A nova fábula do Pedro e o Lobo

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Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

Augusto Gil

Todos, e os médicos em particular, gostaríamos de curar todas as doenças, e se possível até, evitar cada uma delas.

A Medicina tem dado passos gigantescos na descoberta de novos testes, tratamentos e métodos de prevenção.

O uso de vacinas trouxe uma modificação tremenda no risco de algumas doenças com elevada mortalidade. Há muitos (maioria?) médicos que nunca viram um caso de varíola, poliomielite, difteria, ou até sarampo!

Mais recentemente, a investigação permitiu à indústria introduzir novas vacinas contra doenças que não sendo geralmente mortais, causam complicações mais ou menos severas. Algumas desses doenças podem ser provocadas por mais do que um micro-organismo e apenas serão reduzidas no tipo de bactéria ou vírus visado pela vacina. Por exemplo, as vacinas contra o Rotavirus, não impedem a ocorrência de diarreia aguda, mas tão só as mais frequentes, causadas por certas variedades desse vírus. Este aspecto deve ser ponderado quando se discute a implementação de novos programas de protecção e vacinação infantil. Isto é ainda mais importante porque as novas vacinas já não custam cêntimos, mas dezenas ou centenas de euros! A vida duma criança não tem preço, é certo, mas se o dinheiro for limitado, para oferecer umas coisas teremos de restringir noutras!

Nos últimos dias ganhou visibilidade a discussão da prevenção da infecção por VSR (vírus sincicial respiratório), pois há vacina e anticorpo específico para esse micro-organismo. É natural que a indústria tente fazer a promoção do seu produto, e se apoie até, nos "especialistas nacionais". Todavia, o envolvimento nessas actividades por parte de quem tem obrigação de manter distanciamento suficiente para emitir opinião independente, compromete a liberdade de decisão. Dos especialistas que se têm envolvido em iniciativas patrocinadas pela indústria, alguns foram acérrimos defensores da vacinação universal da população infantil contra o Covid-19, ainda há poucos meses, e tentaram até silenciar por via administrativa e disciplinar quem deles discordava ou apelava a uma postura mais prudente. O tempo mostrou quem tinha razão, e que a população infantil foi felizmente poupada à gravidade do Covid que afectou gravemente os mais idosos.

Assim, podemos estar a ler uma nova versão da conhecida fábula do Pedro e o lobo, com apelos dramáticos e conversas discretas de "opinion-makers" e de "influencers", e de tão repetidos deixam de impressionar que os ouve.

Vale a pena recordar que nem todas as infecções respiratórias dos lactentes são causadas pelo VSR, e muitas evoluem de forma benigna. Por isso é necessário avaliar com rigor e independência qual a estratégia que deve ser adoptada: vacina ou protecção

passiva com anticorpos? Em todas as grávidas? Em todas as crianças ou nas que têm risco especial? Cada estratégia tem vantagens e inconvenientes, e custos diferentes.

É inegável que o VSR tem responsabilidade em muitos casos de doença respiratória infantil. Mas se se recordarem, há poucos anos dizíamos o mesmo do Adenovírus. Havendo meios terapêuticos de minorar o seu risco, estes devem ponderados, se os custos forem comportáveis.

Noutras doenças em que recentemente surgiram tratamentos inovadores, tem sido implementada uma estratégia de partilha de risco, isto é, o preço dos novos fármacos é negociado com a indústria e pago em função dos ganhos em saúde que se obtêm. Parece ser uma abordagem equilibrada em que todos ganham, tanto mais quanto melhor for a melhoria dos resultados. As autoridades de saúde podem avaliar esta situação específica e discutir com as empresas qual o melhor modelo de trazer benefício e protecção às crianças. Até lá, seria saudável e prudente evitar o pânico que não é bom conselheiro para decisões que devem ponderação sólida e alta probabilidade de trazerem benefícios consistentes.

Médico

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