A Nouvelle Vague está de luto por Jacques Rozier

Ainda que a sua filmografia nem sempre tenha tido a difusão que merece, Jacques Rozier, autor de <em>Adieu Philippine</em> e<em> Maine Océan</em>, é um nome fundamental da geração do cinema francês que se afirmou nas décadas de 1950/60 - faleceu na sexta-feira aos 96 anos.
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O cineasta francês Jacques Rozier faleceu na sexta-feira, dia 2 - contava 96 anos. Nome emblemático da Nouvelle Vague do cinema francês, o seu legado possui um especial valor artístico e simbólico, ainda que regularmente assombrado pela escassa difusão dos seus filmes. Fifi Martingale, por exemplo, a sua derradeira longa-metragem, apesar de apresentada na Mostra de Veneza de 2001, nunca teve estreia comercial: o próprio Rozier quis modificar a montagem, a ponto de o filme ter passado a viver num limbo artístico e comercial apenas interrompido por algumas raras projeções em eventos especiais (ou pela passagem, em França, no Canal+, uma das entidades produtoras).

O seu primeiro filme de fundo, Adieu Philippine, bastaria para lhe garantir um lugar de destaque na história da geração que revolucionou o cinema francês a partir de meados da década de 1950, a que pertenceram, entre outros, Jean-Luc Godard, François Truffaut e Alain Resnais. Rodado em 1960, estreado no Festival de Cannes de 1962, integrando a programação daquela que foi a primeira edição da Semana da Crítica, Adieu Philippine rapidamente adquiriu o estatuto de filme de culto: a história romanesca da ligação de duas adolescentes com um rapaz a cumprir serviço militar, à espera de partir para a Argélia, impôs-se como retrato íntimo de toda uma geração, algures entre a alegria da ficção e a espontaneidade do documentário. A consagração do filme começou, aliás, pela capa que a revista Cahiers du Cinéma - órgão "oficial" dos autores da Nouvelle Vague - lhe dedicou na sua edição nº 125, com data de novembro de 1961.

Nascido a 10 de novembro de 1926, em Paris, Rozier é mesmo reconhecido como um dos cineastas cujas primeiras curtas-metragens - Rentrée des Classes (1956) e Blue Jeans (1958) - anunciam o espírito de um movimento que, tirando partido dos novos recursos técnicos (em especial as câmaras mais leves e, por isso mesmo, mais ágeis), acabou por influenciar as novas vagas de muitos países, incluindo Portugal e Brasil.

Rozier começara a trabalhar como assistente em programas dramáticos de televisão, acabando por ter a sua "iniciação" cinematográfica na qualidade de estagiário de French Cancan (1955), de Jean Renoir. Godard seria decisivo na concretização de Adieu Philippine, já que foi ele que o recomendou a Georges de Beauregard, produtor da sua longa-metragem de estreia, À Bout de Souffle/O Acossado (1960), outro título decisivo na afirmação da Nouvelle Vague. Falecido no dia 13 de setembro do ano passado, Godard tinha mesmo condensado as memórias da sua amizade num luto amargo e doce, dizendo: "Quando Agnès Varda morreu [a 29 de março de 2019], pensei: da verdadeira Nouvelle Vague, já só somos dois..."

Encarando a rodagem de um filme como uma aventura que transcende a mera "ilustração" de um argumento, oferecendo uma decisiva margem de improvisação a todos os envolvidos (da câmara aos actores), Rozier transformou-se, assim, em bandeira de um cinema de pura liberdade formal e poética. Em 2007, quando incluiu Adieu Philippine no seu ciclo "Carta branca", na Cinemateca, Jorge Silva Melo definiu-o assim: "Não era fácil ter 20 anos em 1960, diz-se. Era, mesmo, perigoso. Mas era tão divertido, diria Rozier. E é nesta subtil oscilação entre a gravidade e a leveza, a despreocupação e o medo, a ironia e a ternura, a angústia e o riso que ele vai assentar o seu diapasão, e captar o único som desse tempo, a cristalização perfeita entre o destino individual e o momento histórico (...)"

O espírito de liberdade criativa que marca a visão de Rozier não será estranho à herança de Jean Vigo (1905-1934), autor do lendário Zero em Comportamento (1933). Aliás, com curiosos cruzamentos: primeiro, porque foi Rozier que, em 1964, realizou um documentário dedicado a Vigo para a série televisiva "Cinéastes de Notre Temps"; depois, porque em 1986, ano da sua longa-metragem Maine Océan, seria consagrado com o Prémio Jean Vigo, uma das distinções mais importantes do cinema francês, celebrando a independência e a originalidade dos seus criadores - aliás, o prémio é atribuído, não ao filme, mas ao seu realizador.

Depois de Du côté d"Orouët (1973), telefilme que acabou por ser difundido nas salas de cinema, e Les Naufragés de l"île de la Tortue (1976), comédia com Pierre Richard que se propõe "atualizar" o mito de Robinson Crusoé, Maine Océan terá sido um dos títulos que mais e melhor ajudou a conhecer as singularidades do universo de Rozier. Trata-se, aliás, de um projeto indissociável de dois nomes portugueses: o produtor Paulo Branco e o diretor de fotografia Acácio de Almeida. Através dos encontros e desencontros de um grupo de personagens que se cruzam numa viagem de comboio, Rozier transcende as regras da comédia de costumes para construir uma parábola sobre as frágeis utopias da condição humana, temperando nostalgia com humor.

Apesar das limitações de difusão, a obra de Rozier recebeu mais duas das maiores distinções do cinema francês: o Prémio René Clair, em 1997, e Le Carrosse D'Or, em 2002, o primeiro atribuído pela Academia Francesa, o segundo pela Société des Réalisateurs de Films. Este último é entregue todos os anos, em Cannes, no âmbito da Quinzena dos Realizadores (a partir deste ano denominada Quinzena dos Cineastas) e contempla cineastas de todo o mundo; entre os consagrados estão Clint Eastwood (2003), David Cronenberg (2006) e Agnès Varda (2010) - Rozier foi o primeiro, já que o prémio surgiu, precisamente, em 2002.

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