A nostalgia cósmica de Wes Anderson

Pouco depois de ter dividido as opiniões no Festival de Cannes, chega aos cinemas o novo filme de Wes Anderson. <em>Asteroid City</em> não facilita a vida ao espectador, mas quem se entregar aos seus (muitos) encantos para lá da superfície será recompensado.
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Não vou gastar muitas linhas com o fenómeno salutar da crítica negativa aos últimos filmes de Wes Anderson, nem sequer entrar pelo tópico do esgotamento a que a internet votou o seu cinema, submetendo-o a intermináveis brincadeiras "cinéfilas" de teor decorativo. Mas não deixa de ser interessante que, quanto mais se reiteram os argumentos da desilusão, mais o realizador texano vem refinando as especificidades desse mesmo cinema que responde aos seus próprios predicados. Posto isto, fica o aviso: Asteroid City é um objeto andersoniano elevado ao cubo, que não presta vassalagem senão ao seu universo. O universo de um dos mais nostálgicos autores contemporâneos, fascinado com uma certa dimensão tátil das imagens, prontas a servir de veículo para passeios estranhos, de emoções buriladas na matéria de uma referência temporal.

O tempo é, por isso, a primeira coisa a que nos podemos agarrar. Concretamente, 1955. O ano a que Wes Anderson vai buscar não só o impacto que o Actors Studio teve numa certa mudança conceptual de Hollywood, mas também a visão dos testes nucleares (aquelas nuvens em forma de cogumelo no horizonte) que ensombram o otimismo desses meados do século XX. Como é que ambos coexistem num filme? Ou, reformulando a pergunta, que outra maneira de coexistirem senão num filme de Wes Anderson? Podemos tentar explicar dizendo que se trata de um filme sobre um programa de televisão que investiga uma peça, o seu dramaturgo e quem a encenou. Há a figura do narrador "à antiga" (Bryan Cranston), que tenta organizar a informação aos nossos olhos, e um conjunto de atores reunidos na cidade fictícia do título, que é basicamente um deserto com uma cratera de meteorito, um diner, uma oficina e um motel, destino de uma série de personagens (sim, o desfile de estrelas do costume) que ali vão participar numa convenção de miudagem com jeito para inventos científicos.

Uma dessas personagens, interpretada pelo habitué Jason Schwartzman, é um fotógrafo tristonho incapaz de contar aos filhos que a mãe morreu há semanas. Alguém que, munido da sua máquina, rouba uma fotografia à atriz (Scarlett Johansson) sentada ao balcão do diner, mãe de outro geniozinho científico, a ostentar a dose certa de melancolia para se fazer o "clique" humano naquele luminoso fim do mundo, devidamente ordenado mas suscetível a diferentes expressões de caos. Sobretudo o caos que no cinema de Wes Anderson em geral vem, lá está, com a morte (sempre fora de campo), ou neste caso com a visita de um extraterrestre...

É maravilhosa a forma como Asteroid City, na sua precisão de relógio, se transforma numa desordem cósmica em que a dor e a curiosidade - aqui duas faces da mesma moeda - dão origem a um dos mais tocantes filmes do seu realizador. Em especial porque, mais do que nunca, o que é colocado em perspetiva é o próprio ato da narração nas suas infinitas possibilidades, com detalhes que ficam incompletos num primeiro visionamento e a que apetece regressar. Usar o argumento da irritação geométrica e "intelectual" significa ficar à porta dos doces mistérios que se escondem dentro do mecanismo do relógio. Mas claro, a cada um o seu cinema.

dnot@dn.pt

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