A nossa Truss

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Devo um agradecimento a António Costa. Esta semana, graças à sua bem-disposta prestação parlamentar, a minha hesitação sobre a escrita deste artigo esfumou-se. Desde a ascensão de Liz Truss a primeira-ministra que ponderava dedicar esta coluna à comparação entre a circunstância dos governos português e britânico e dos seus respetivos partidos. Ambos, afinal, estão no poder há muito tempo; talvez demasiado, para o seu próprio bem. À primeira vista, ensaiar um paralelo entre eles - os socialistas portugueses e os conservadores ingleses - poderia parecer descabido. À segunda, nem por isso. E o sr. primeiro-ministro fez por prová-lo no debate de quinta-feira.

De forma humorada, António Costa respondeu ao líder da Iniciativa Liberal acusando-o de ser a encarnação lusitana de Liz Truss. "Agora temos um governo na Europa que pensa exatamente o que a Iniciativa Liberal pensa: o novo governo inglês", desferiu Costa contra a IL. Brandindo a primeira página do Financial Times, sugeriu a Cotrim de Figueiredo: "Imagine que era a sua fotografia e não a do ministro das Finanças inglês. Esta é a sua cara, a cara da Iniciativa Liberal. Este é o desastre económico que é a Iniciativa Liberal".

Há que dizê-lo com frontalidade: teve graça. Associar o primeiro deputado da IL à doideira que têm sido as primeiras semanas de governação de Liz Truss é verdadeiramente injusto, mas politicamente eficaz. Os liberais, afinal, foram a única força parlamentar que não se auto-torpedeou em guerras civis desde a sua legislatura de estreia: PAN, Chega e Livre não podem dizer o mesmo. A lição que o desaire de Truss empresta aos nossos liberais é outra: quando a ideologia ignora o contexto, converte-se rapidamente em cegueira e, como sucedeu em Whitehall, em descrédito. Dos eleitores aos mercados, passando pela sua bancada, já ninguém acredita no governo de Liz Truss. Não me parece que seja essa a situação da Iniciativa Liberal, por mais irresistível que fosse a ilustração de António Costa.

Muito curiosamente, e seguindo as associações luso-britânicas do primeiro-ministro, é o seu PS que se assemelha perigosamente aos conservadores agora encabeçados pela senhora Truss. Não nas propostas reaganistas, evidentemente, mas num conjunto de erros não menos danosos. O governo Costa, como o governo Truss, recusou divulgar um cenário económico para os tempos vindouros. Cá pressionados pelo Presidente da República a antecipá-lo, lá pelo gabinete de responsabilidade orçamental (a UTAO britânica), ambos adiaram para data mais conveniente a publicação de números que sabem ser politicamente difíceis de anunciar. Cá como lá, e em contraste com a vasta maioria dos governos europeus, os primeiros-ministros português e britânico têm feito pouco para incentivar as suas populações a prepararem-se para 2023. Preferem que sejam as oposições e a comunicação social a darem más notícias. Cá como lá, personalidades independentes foram afastadas de cargos de escrutínio: lá o secretário-permanente do Tesouro, cá o presidente do Tribunal de Contas.

No seu percurso pessoal, Costa e Truss exibem a flexibilidade - ou a incoerência - de quem está na política há décadas. Ela, que foi de remainer a brexiteer. Ele, que foi de contestatário de Bruxelas a candidato a Bruxelas. Ela, que recusou responder se o presidente francês era amigo ou inimigo, mas marcará presença no primeiro encontro da comunidade europeia de Macron. Ele, que renacionalizou a TAP e acabou com PPPs na Saúde, mas trabalha agora para vender a TAP e para construir um TGV com PPPs.

Ambos amarrados a maiorias absolutas conquistadas com programas opostos aos que executarão em crise, ambos assolados pelas fraturas internas que a longevidade no poder inevitavelmente provoca, ambos confrontados com uma realidade que desmentirá o pressuposto que antes ofereceu a vitória aos seus partidos, Truss e Costa são gémeos bem mais siameses do que os tories e os ILs.

Em Inglaterra, a promessa de prosperidade depois do Brexit morreu. Em Portugal, a promessa de fim de austeridade depois da geringonça idem.

A nossa Truss, ironicamente, não é João Cotrim.

É António Costa.

Colunista

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