A nossa pequenez cósmica
Uma digressão rápida pela literatura recorda-nos de que o medo do ar pestilento é algo com que vivemos até muito recentemente. A Peste de Albert Camus terá sido inspirada na cólera em Oran em meados do século XIX e Nemesis de Philip Roth num surto de poliomielite em Newark, nos anos quarenta do século XX. Ambos - e com eles a alegoria de Saramago no Ensaio sobre a Cegueira - nos podem ajudar a racionalizar os tempos que vivemos e a pô-los em perspetiva.
Se formos um pouco exigentes com o nosso cosmopolitismo recordar-nos-emos que vivemos num mundo em que as doenças contagiosas ceifam milhões de vidas todos os anos, que a cada dois minutos uma criança morre de malária e 1,5 milhões de pessoas morrem por ano de tuberculose. Mas essas são doenças que associamos aos outros.
O que se passa no espaço público em torno do covid-19 só é inteiramente compreensível no quadro de que esquecemos muito rapidamente que as epidemias fazem parte da nossa vida. Criámos a ilusão de que a humanidade poderia viver imune a agressões ambientais e descobrimos os limites da nossa capacidade de resposta a tais agressões e de repente entramos em pânico quando descobrimos esse facto trivial da vida humana até muito recentemente.
Tal como no passado, o combate à epidemia deve usar todos os instrumentos de que dispomos. Já vimos o gráfico da Vox que alimenta a estratégia de contenção que estamos a seguir e nos diz que, impotentes para travar o vírus, temos que desacelerar o contágio de tal forma que o número de infetados a necessitar de cuidados de saúde em simultâneo não seja superior à capacidade de resposta do nosso sistema de saúde.
É certo que esse gráfico é um modelo teórico, mas é convincente, podemos estimar a percentagem de casos que necessitará de internamento e a percentagem que necessitará de cuidados intensivos e identificar o número máximo de infetados que o nosso sistema comporta em simultâneo. E quanto mais baixa for a nossa capacidade de resposta mais vital será que atrasemos o ritmo do contágio, quer porque podemos tentar em emergência fazer o reforço de uma estrutura que deixámos enfraquecer, como quem remenda uma ponte sem manutenção em época de cheias, quer porque pode ser que a nossa capacidade máxima nunca seja atingida. Todos desejamos às autoridades sucesso nessa tarefa.
Mas temos que manter em perspetiva quer o que estamos a fazer, quer os seus resultados, quer os riscos associados às opções que tomámos. Compreende-se perfeitamente que procuremos ao máximo que todo o movimento não estritamente necessário seja reduzido, perceber-se-ia mesmo que fossemos mais drásticos na proteção de idosos, não esquecendo que o gesto dos pais italianos que mandaram os seus filhos por segurança para perto dos avós faz parte da sua tragédia, entende-se a vigilância reforçada de cadeias de contágio e medidas como o isolamento de Ovar. Todas elas fazem sentido.
O que não podemos esquecer, por outro lado, é que tudo o que pararmos sem necessidade produz um mal irreparável. Cada dia que perdermos é irrecuperável. Pelo que devemos pedir às autoridades sentido da proporcionalidade, ponderação de riscos, capacidade de travar tudo o que é necessário, mantendo tudo o que é possível na vida normal das pessoas. Não é tarefa que se inveje a ninguém, essa de fazer tal arbitragem e até à desnecessária declaração do estado de emergência o governo estava a agir de um modo que equilibrava muito bem ação enérgica, preservação do coletivo e não submissão à ação por medo. O Governo usará os poderes reforçados com a mesma parcimónia. Foi isso que se depreendeu das palavras do Primeiro-ministro que, sabiamente não pediu nem recusou poderes extraordinários, não estragou a oportunidade de aparecer na fotografia de um Presidente da República em campanha eleitoral e continuará com a frieza necessária a agir sem ceder à tentação do abuso de poder. A confiança neste Primeiro-Ministro desdramatiza todo este episódio. Mas não apaga o seu efeito histórico. No próximo ataque de um coronavírus - não esqueçam que vai haver, estes bichos estão connosco no universo - o Primeiro-Ministro pode não ser um democrata de créditos tão sólidos.
Não há razão para alarme especial com este estado de emergência e deve ter sido isso que perceberam os deputados que sobre ele se abstiveram na Assembleia da República e muitos dos que votaram a favor porque as circunstâncias de todo o sistema político se ter curvado perante o capricho presidencial o exigiam. Mas há, como disse o Rui Pena Pires em artigo no Público uma mensagem estruturalmente errada neste gesto.
Não é a liberdade e a democracia que nos impedem de combater melhor o vírus e a associação entre restrição da liberdade e eficácia no combate à emergência de saúde pública deriva apenas de falta de amor pela democracia liberal que ainda nos povoa.
Com o covid-19 voltámos a sentir a nossa pequenez cósmica e é nesses momentos que se testa a solidez dos nossos princípios. Sim, entre muitas outras causas de morte, há vírus que matam. A variável-chave para os combater é a gestão responsável em todos os momentos dos sistemas de saúde não a supressão espetacular das liberdades. Oxalá uma das lições desta crise seja a de que reforçar a saúde pública faz parte dos objetivos prioritários partilhados no país. Não passaram ainda muitos anos sobre o discurso de que o nosso sistema não precisava de mais recursos, só de melhor gestão.