"A nossa costa é pouco favorável à preservação"

José Bettencourt é arqueólogo subaquático e explica em que condições pode estar o navio quinhentista naufragado ao largo de Esposende. É pouco provável que esteja intacto, mas o investigador do Centro de História de Além-Mar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sublinha que, por serem tão raras, todas as descobertas são importantes.
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O que se pode esperar deste achado?

Não sabemos as condições em que estão os destroços. À partida dizer que está intacto parece-me especulativo, porque se há coisa que sabemos é que a nossa costa é pouco favorável à preservação. O que não quer dizer que a descoberta não tenha um potencial arqueológico. Qualquer destroço tem sempre algum potencial científico, quer para perceber a forma como estes navios eram construídos, quer o próprio espólio que também poderá ser importante para perceber a rota e a função do navio. A verdade é que o património arqueológico na nossa costa é muito frágil e escasso, e por isso encontramos poucos e cada um deles é muito importante. Podemos ficar a saber mais da construção naval. Diria, apesar de não estar envolvido na investigação, que é uma embarcação construída na península ibérica, mas não sabemos se é um navio para a navegação oceânica, se seria de uma rota europeia. Estive envolvido numa primeira fase da avaliação das madeiras deste navio que apareceram na praia. Não há indicação de que fosse construído extra Europa. Por isso, a rota que estaria a fazer seria europeia.

O que ainda pode ser descoberto na nossa costa?

Há muitos registos históricos de naufrágios na costa portuguesa, o que, em teoria, faria da nossa costa muito rica para a investigação da navegação moderna. Mas temos uma costa aberta, muito exposta, muito pouco favorável à preservação de sítios arqueológicos subaquáticos. E o caso do Belinho é paradigmático, o navio só foi descoberto porque houve um inverno com características extremas que revelou um sítio enterrado há quase 500 anos. E essas condições que nos permitiram descobrir esta embarcação são ao mesmo tempo adversas à preservação dos vestígios. Tirando estuários e zonas lagunares, que serão mais abrigados, o resto da costa não é favorável à preservação. Temos milhares de fontes escritas que nos falam de naufrágios históricos e depois a arqueologia subaquática mostra que, no geral, os sítios estão mal preservados. O que quer dizer que os vestígios serão mais limitados. O que faz com que para a arqueologia subaquática cada sítio é muito importante.

É muito difícil chegar a estes achados?

Temos um caso sério de subfinanciamento, é uma área com muito poucos meios. Até há um tempo era o Estado que fazia a maior parte da arqueologia subaquática e depois esta investigação passou para algumas universidades e câmaras municipais, que têm meios escassos e reduzidos. Esse é o panorama. Em termos técnicos há locais mais difíceis de aceder que outros, mas o pior é o subfinanciamento. Há duas formas de ligar com a arqueologia: ir à procura do sítio específico, é uma forma norte-europeia, ir atrás dos navios míticos; e há a forma da reação, em que há um sítio que surge, porque um mergulhador descobre um sítio arqueológico ou aparecem vestígios na praia e depois temos que dar resposta aos desafios de gestão que esses vestígios colocam. Esta última é a linha que mais se tem desenvolvido em Portugal, por causa da falta de meios.

Que zonas podem ter mais vestígios?

Não sei, a costa portuguesa em teoria é muito rica. Temos centenas de referência a naufrágios, há umas zonas com mais referências, toda a entrada do Tejo, por ser a entrada no porto de Lisboa, à partida terá mais potencial de destroços. Mas também a ilha Terceira e outras dos Açores, porque era um local onde se concluíam as rotas transatlânticas, e é uma das zonas onde se tem trabalhado mais. Principalmente no que diz respeito à navegação dos séculos XVI a XVIII e também já XIX. São zonas com potencial muito significativo. A costa algarvia, com uma navegação muito intensa, provavelmente, desde a idade do ferro tem condições de preservação diferente, mais resguardada, o que pode fazer dela uma costa muito rica. E depois há zonas portuárias ou os cabos que são zonas de transição, onde provavelmente valeria a pena trabalhar mais.

Quais foram até agora as descobertas mais significativas nesta área?

Depende do questionário científico. Do ponto de vista da cronologia talvez as mais antigas embarcações que são as pirogas do rio Lima, do século II Antes de Cristo, ou o navio São Pedro de Alcântara, descoberto em Peniche, que era espanhol (do séc. XVIII), mas entrou no imaginário por trazer prisioneiros da América do Sul. Depois talvez a descoberta mais relevante de todas será a Ria de Aveiro A, por causa da carga do navio, porque permitiu estudar a construção do mesmo e as rotas de abastecimento de cerâmica em todo o Atlântico. Temos também a descoberta do Nossa Senhora dos Mártires, em Oeiras. Ou as descoberta dos navios da Boa Vista, que permitiram conhecer a construção naval que antes não sabíamos como era. Finalmente, nos Açores, teremos talvez o maior conjunto de naufrágios da época moderna, dos séculos XVI e XVII. Como o naufrágio da baía da Horta, um navio que transportava marfim africano e que era provavelmente britânico, tendo em conta a carga.

Perfil

Investigador do Centro de História de Além-Mar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, desde 2005

Especialista em arqueologia moderna e arqueologia náutica e subaquática

José Bettencourt fez parte da equipa que fez a investigação da carga do navio Ria de Aveiro A e tem estudado os naufrágios na costa das ilhas Terceira e Faial, nos Açores.

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