A nossa Coreia do Norte

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Ficou famosa a resposta que Bernardino Soares, em 2003, deu a uma pergunta do DN sobre o regime da Coreia do Norte. "Tenho dúvidas de que não haja lá uma democracia", disse o ex-líder de bancada do PCP, desde 2013 à frente da Câmara de Loures. Igual sucesso teve a deputada Rita Rato, em 2010, sobre os gulags (campos de concentração da URSS) - "Admito que possa ter acontecido essa experiência" - e os presos políticos na China: "Não conheço essa realidade de forma que me permita afirmar alguma coisa."

Dá vontade de rir, não é? Ou de chorar. E compreende-se que tanta gente tema que um partido com esta posição em relação a questões básicas de direitos humanos, de Estado de direito e de definição do que é um regime aceitável não possa ser levado a sério como parceiro de governo. De facto, veja-se a posição do PCP sobre o caso do luso-angolano Luaty Beirão, em greve da fome há 25 dias por estar, com mais 14 homens, preso em Angola sob acusação de preparar um golpe de Estado para derrubar o respetivo presidente - acusação fundamentada, ao que se sabe, no facto de os 15 reunirem para debater formas de democratizar o país com base em livros como Da Ditadura à Democracia, de Gene Sharp, americano nomeado para o Nobel da Paz em 2009 e cuja obra inspirou os movimentos da Primavera Árabe.

Quando nesta semana o BE apresentou, na Assembleia Municipal de Lisboa, um voto de solidariedade com os 15 apelando à sua imediata libertação, o PCP foi o único a votar contra, alegando tratar-se de "uma ingerência nos assuntos de Angola". Preferiu propor um pedido para que as autoridades angolanas atentem à "situação humanitária de Luaty Beirão". O BE, naturalmente, votou contra; o PSD também, o que é curioso: afinal, o que os comunistas fizeram foi emular o ministro dos Negócios Estrangeiros, que reduziu Luaty a "caso humanitário" e tudo o resto a "matéria interna de Angola" na qual "não nos imiscuímos."

Ou seja, porque o MNE fala pelo governo e este pelo país, nós, Portugal, não temos nada a dizer sobre o facto de um português (Luaty, frise-se de novo, goza de dupla nacionalidade) ser preso por debater livros. A próxima vez que alguém decidir gozar com o PCP e Bernardino Soares - que, já agora, fez uma coligação com o PSD, com o qual governa Loures - por causa das suas posições sobre a Coreia do Norte e os gulags, lembremo-nos disto. Nós, Portugal, não nos pronunciamos sobre se em Angola há ou não democracia e Estado de direito; nós, Portugal, eleitos há um ano para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, não conhecemos a realidade de forma a poder afirmar que é inadmissível prender pessoas por quererem lutar pacificamente pelas suas ideias. Como a TV pública angolana, que à greve de fome de Luaty chamou "um comportamento diferente perante os alimentos", Portugal tem um comportamento diferente perante os direitos humanos. E se Luaty morre? Ora, mandamos uma coroa de flores linda.

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