"A nível europeu, existe vontade de incrementar as capacidades de defesa e segurança, o que implica gastos"

Conceituada especialista em temas militares, a socióloga Maria Carrilho acaba de publicar Parceiros Desiguais - A Defesa nas Relações Europa-EUA e em entrevista explica a complexidade por trás da NATO e como Portugal tem sabido responder ao desafio de se enquadrar no atlantismo.
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A intervenção americana na Primeira Guerra Mundial significou o fim da aversão que vinha dos tempos de Washington e Jefferson, e depois reforçada por Monroe, ao envolvimento dos Estados Unidos nos assuntos europeus, sobretudo os militares?
Conforme se pode ler no livro que agora publiquei, existiam fortes reticências, aversão, mesmo oposição, numa nação ainda em construção - os Estados Unidos da América -, quanto a envolvimento militar no território europeu. Com James Monroe (1817-1825) e Theodore Roosevelt (1901-1909), os EUA tinham em vista, em primeiro lugar, estabelecer e consolidar a sua esfera de influência no continente americano, o que passa pela incorporação do Texas, a compra da Louisiana aos franceses ou do Alasca, adquirido à Rússia. Este processo afirma-se nos inícios do século XX, enquanto na Europa as potências se digladiavam, imbuídas por uma ideia de império que moldava já os objetivos , o que era acompanhado por uma corrida acelerada aos armamentos, desde logo os mais avançados tecnologicamente. Aliás, na altura os militares americanos eram vistos com alguma sobranceria pelos seus congéneres europeus, enquadrados por um modelo tradicional, com os exércitos em campo, o que em breve veio a revelar as suas desvantagens. Woodrow Wilson (1913-1919), que se via mais com um perfil de pacificador, não tinha interesse no envolvimento do seu país numa guerra entre europeus. Mas perante episódios como o afundamento do navio de passageiros Lusitânia e sucessivos ataques a navios (Sussex e Arabic) - que causaram a morte a muitos americanos -, tornava-se evidente ao Presidente a inevitabilidade do envolvimento no cenário de guerra . Quando, em 1917, os alemães afundaram cinco vasos de guerra americanos, com o apoio do Congresso é declarada guerra à Alemanha. E é assim, para resumir o impacto deste facto, que cerca de 1750 000 americanos foram mobilizados no conflito, contribuindo decisivamente para a vitória das potências aliadas. E também para o prestígio da nova nação americana, o que se traduzia naturalmente em influência a nível internacional.

Quando os Estados Unidos voltam a enviar tropas para a Europa, no âmbito da Segunda Guerra Mundial, é já de forma mais egoísta, por temerem que uma eventual Alemanha nazi vitoriosa se tornasse, com o aliado Japão, uma ameaça?
Os EUA desde muito cedo souberam identificar e defender os seus interesses. Sendo que " interesses" não significa ignorar valores, designadamente de cooperação... Lembre-se o que se passava na sociedade americana nesta época, com a presidência de Franklin D. Roosevelt. Já em 1937, num discurso perante o Congresso, ele afirmava que a América não devia esperar ser poupada - perante o perigo representado por Hitler. Já nessa altura chegavam aos Estados Unidos muitos judeus fugidos da crescente violência antissemita na Alemanha, e não só. No entanto, Roosevelt defrontava-se com os seus opositores na frente interna... O Presidente americano, contudo, estava atento a indicadores, como o colapso francês, e de alguma forma pensava que a Europa era demasiado importante para a deixar apenas na mão dos europeus... Mas, como é sabido, é com o ataque a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, claro ato de guerra por parte do Japão, que o Presidente está plenamente legitimado para declarar a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial - para a qual, aliás, já estavam preparados. A partir daí, assiste-se a uma espantosa demonstração da força militar americana: bastará dizer que em dois anos a produção de armamento é multiplicada por mais de oito vezes e a construção naval por 18 vezes.

A decisão de permanência de militares americanos na Europa depois da derrota nazi tem a ver com a perceção de que a União Soviética está a caminho de se tornar a nova ameaça não só aos aliados europeus dos Estados Unidos, como aos próprios Estados Unidos?
Sim, a URSS constituía uma eventual ameaça, designadamente em termos geopolíticos. Pela Europa passavam as grandes linhas de enfrentamento entre sociedades comunistas e sociedades baseadas em sistema de mercado, assim como de governação democrática, a partir da livre eleição de representes. Terminada a guerra, a Europa tinha saído em ruínas, politicamente vulnerável, e era claro que emergiam duas grandes potências, em breve superpotências. Estados Unidos e União Soviética. Isso já era visível na reunião de Yalta, em fevereiro de 1945, mas mais ainda em Potsdam, em julho e agosto do mesmo ano, donde sai um apelo à rendição incondicional do Japão.

A criação da NATO, em 1949, é uma forma de a América se obrigar a permanecer na Europa ou é antes uma forma de a América forçar os aliados europeus a participar numa aliança antissoviética que interessa à América à escala global?
Do que foi dito, podemos enquadrar o caminho que leva à criação da NATO. Já Churchill, num seu famoso discurso, em 1946, falava de uma "cortina de ferro" que tinha descido sobre o continente europeu. É preciso ir mais além de um resumo, em poucas palavras, desse percurso: cite-se apenas as revoltas na Grécia, o golpe de Estado na Checoslováquia, em fevereiro de 1948. Já em abril do mesmo ano vários países da Europa Ocidental formam o Pacto de Bruxelas - mas é só com a participação dos Estados Unidos e do Canadá que se forma uma força suficientemente dissuasiva em termos militares, que irá constituir a Organização do Tratado do Atlântico Norte, cujo Tratado foi assinado em Washington em abril de 1949. Houve uma convergência de interesses, embora diferentemente encarada pelos vários membros. Os Estados Unidos, obviamente, exerciam a liderança. Recorde-se o Artigo Primeiro e como Portugal foi um dos membros fundadores...

A expansão da NATO depois da desagregação da União Soviética tornou mais frágil, por haver maior diversidade de interesses nacionais, a relação de defesa entre os Estados Unidos e a Europa?
De alguma forma, assim tem sido. O perigo de um inimigo comum - a URSS - desvaneceu-se. E mesmo o tipo de guerras, para as quais as forças NATO estavam preparadas, alterou-se. Mas mesmo assim, se uma situação como a de um eventual confronto nuclear total não é hoje encarada, ao contrário da hipótese da Mutual Assured Destruction (MAD) durante o pior período da Guerra Fria, outros tipos de ameaças, riscos, estão presentes, captando no seu âmbito o necessário contributo das Forças Armadas nas suas várias vertentes. Alguns riscos são de tal ordem - vejam-se as alterações climáticas ou as pandemias - que exigem cooperação global, para além dos diferentes alinhamentos quanto à defesa militar, cada vez mais implicada na esfera da segurança, cujos contornos também são cada vez mais alargados.

Como vê a disparidade de reação dos europeus em relação à intervenção americana no Afeganistão em 2001, apoiada por todos, e depois à no Iraque em 2003, muito contestada pela França e Alemanha?
Convém não esquecer o impacto histórico dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. A condenação deste ato foi declarada pela generalidade dos países, incluindo muçulmanos. O Afeganistão foi identificado como o país que, com o regime dos talibãs, dava abrigo à Al-Qaeda, criada e chefiada por Osama bin Laden. A organização da resposta militar norte-americana foi imediata e apoiada pelos países europeus - e não só. A própria ONU, a 20 de setembro, reconhece, de acordo com a sua Carta, o direito dos Estados Unidos à "autodefesa coletiva". Quanto à NATO, embora pela primeira vez em 52 anos tenha apontado desde logo para o recurso ao artigo V, encontrava-se perante as dificuldades inerentes á aplicação do mesmo, em vista da constituição de uma força militar - devido à morosidade da consulta aos respetivos governos e Parlamentos. No entanto, verificou-se uma coalition of the willing, desde logo com a participação britânica, mas também com apoios significativos, designadamente, de meios navais, satélites e serviços de intelligence franceses. Pelo contrário, a guerra no Iraque foi iniciada fora do enquadramento das Nações Unidas e com o pretexto da existência, no Iraque , de armas de destruição massiva, o que não correspondia ao que sabiam os serviços de informação e segurança de vários países da União Europeia. Foi uma viragem da estratégia dos Estados Unidos quanto à luta contra o terrorismo, baseada em supostos factos que, mais tarde, todos reconheceram serem falsos, incluindo o secretário de Estado na altura, general Colin Powell, conforme se pode aprofundar no livro que acabo de publicar. Essa guerra ocasionou a maior fratura entre os Estados Unidos e a Europa desde sempre registada. E também deixou marcas a nível intraeuropeu, ao dar corpo a dois grupos - como dizia Donald Rumsfeld, "nova Europa", com os americanos, e "velha Europa"...

Primeiro Barack Obama e depois Donald Trump foram muito claros em exigir mais investimento em defesa aos europeus, mínimo comparado com o americano. Existem condições políticas para os tais 2% do PIB em despesas militares quando a opinião pública europeia parece pouco motivada para a ideia de guerra?
Desde muito cedo que Washington exigia aos europeus uma participação mais elevada nas despesas NATO. Em 1977 situava-se nos 3% do PIB de cada país... O que se revelou impossível de cumprir. Durante a Administração Reagan verificou-se que esses contributos se situavam ente os 2,8%, em 1981, e os 1,9%-2,1% em 1983... Trata-se de uma continuidade nas pretensões dos Estados Unidos e creio que se manterá nos 2%. Mas os efeitos da pandemia, ainda em curso, e com possíveis surpresas negativas no plano da economia e dos orçamentos de cada país europeu não permitem ainda qualquer previsão atendível. Contudo, é certo que a nível institucional europeu existe a vontade de incrementar as capacidades de defesa e segurança, o que implica um acompanhamento a nível dos gastos.

A NATO e também a UE, através da Bússola Estratégica agora a ser criada, identificam a Rússia como a grande ameaça. Isso significa que é inevitável um reforço dos laços de defesa entre os dois lados do Atlântico?
Uma resposta cabal a essa questão só pode ser dada nos próximos meses, na sequência das importantíssimas reuniões que irão ter lugar em junho: cimeira dos G7, no Reino Unido, e logo de seguida a cimeira da NATO em Bruxelas, marcada para dia 14. A presença de Joe Biden nestes acontecimentos reveste-se de especial significado. É nesta ocasião que Biden desenvolve um programa de atividades bilateral. Interessa destacar a reunião/cimeira entre - sublinhe-se - o Presidente dos Estados Unidos, a presidente da Comissão Europeia e o presidente do Conselho Europeu. Não se trata de uma das habituais reuniões "à margem de", mas de um encontro das máximas autoridades digamos que euroamericanas, constituindo um momento até simbólico no quadro das relações entre Estados Unidos e a União Europeia. Poderemos assim avaliar quanto, para além do clima amistoso, tais esforços se irão traduzir numa agenda concreta, de maneira a enfrentar assuntos cruciais , desde as alterações climáticas, o comércio internacional, os novos desafios tecnológicos e científicos...

A China é vista como ameaça pelos Estados Unidos, mas não pela UE. Em caso de conflito aberto entre chineses e americanos, os europeus terão alguma hipótese de escapar ao chamamento solidário do tradicional aliado?
A China, parece certo, estará também entre os temas a abordar nessa ocasião e é prematuro, para mim, pronunciar-me sobre esse assunto antes de dispor de mais informação.

A relação de defesa entre os Estados Unidos e a Europa passa também por uma estratégia comum contra ameaças como o terrorismo?
Conforme já se verificou no passado, existe convergência de interesses na luta contra o terrorismo e de cooperação quanto a esse objetivo, dentro dos limites impostos pela autonomia dos diferentes serviços de informação. A Europa, devido à sua proximidade com África, onde o jihadismo ganha adeptos e o terrorismo aparentemente sem sentido quase se banalizou, encontra-se, quanto a este continente, numa posição mais preocupante do que acontece com os Estados Unidos. A atuação desenvolvida é já significativa, como é sabido, incluindo em termos militares. Sabemos do que está a acontecer em Moçambique, que nos diz particularmente respeito. Acredito que Portugal tudo fará para envolver a União Europeia, segundo o que for considerado oportuno por parte do governo moçambicano, no apoio à contenção do fenómeno terrorista e à sua erradicação.

Como vê a relação de defesa entre os Estados Unidos e Portugal ao longo destes 72 anos na NATO? É a Guerra do Ultramar o principal ponto de viragem ou é sobretudo o 25 de Abril?
É um longo período para resumir em poucas palavras. Convém sublinhar que a participação de Portugal na NATO enquanto membro fundador levou, na altura, a algumas esperanças, no sentido de uma abertura do regime de Salazar - na medida em que era suposto um terreno comum de valores democráticos no seio da Aliança Atlântica. Muitos opositores ficaram desiludidos com os Estados Unidos - donde esperavam forte pressão nesse sentido - quando compreenderam que tal não iria acontecer. A presença de Portugal entre os membros da NATO era por um lado incómoda, mas por outro tratava-se de um aliado seguro, cujo anticomunismo não deixava dúvidas e que dispunha de um notável trunfo estratégico - os Açores. É principalmente ao longo da época das guerras coloniais, com as posições contrárias que nas Nações Unidas se exprimiam cada vez mais frequentemente, que a posição de Portugal se torna difícil, atingindo a imagem da própria NATO, junto de países dos vários continentes cujo papel no xadrez internacional interessava à Aliança. Portugal alienava simpatias: recorde-se que o próprio Papa Paulo VI recebeu em Roma os dirigentes dos movimentos de libertação da Guiné, Angola e Moçambique. Era sabido que também os Estados Unidos se preocupavam com o futuro destes territórios. O 25 de Abril marca o início da transição para a democracia e do regresso de Portugal ao "convívio das nações", embora as desconfianças de Washington em relação ao processo revolucionário levassem Mário Soares a tentar tranquilizar o então secretário de Estado americano Henry Kissinger, que depois do 25 de novembro de 1975 começava a acreditar na consolidação da democracia em Portugal. Em março de 1977 formula o seu pedido de adesão à Comunidade Económica Europeia.

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