Aí está a primeira bomba narrativa do ano cinematográfico: Fairytale, do russo Aleksandr Sokurov. Bomba? Entenda-se: o filme não visa a nossa vulnerável condição de pobres humanos, antes aposta em resistir a algumas ideias preguiçosas, supostamente indiscutíveis, que vão alimentando a cultura audiovisual dominante. Para nos ficarmos por um paralelismo, porventura sugestivo, pensemos na muito aplaudida série da Netflix, The Crown, sobre as atribulações da família real britânica....Peço ao leitor que não se precipite. Não estou a propor um banal concurso de valores, procurando estabelecer uma qualquer hierarquia enredada entre "bom" e "mau", "melhor" ou "pior". O que me parece realmente interessante é o facto de, na fronteira de qualquer reflexão sobre objetos tão díspares, depararmos com uma mesma evidência (incómoda, reconheço): não há comparação possível..The Crown é apenas um pormenor. A maioria dos filmes e séries que se vão fazendo sobre memórias históricas decorre de um mesmo pressuposto artístico e filosófico. Assim, refazer tais memórias consiste em procurar os cenários adequados, o guarda-roupa realista e, por fim, os atores e atrizes que possam exibir alguma semelhança física com as personagens que interpretam..Os resultados serão mais ou menos interessantes (insisto: não é essa a questão), refletindo um conceito primordial de "duplicação" das conjunturas e factos evocados - por isso, a tais casos se aplica a expressão "reconstituição histórica". Que faz, então, Sokurov? Vem lembrar-nos que nunca há reconstituição: tudo é ficção, ninguém é dono da história e dos modos de a contar..As coisas complicam-se, caro leitor. Apetece-me dizer-lhe que, em boa verdade, Fairytale é uma comédia. O que (reconheço também) apenas enfraquece um pouco mais a minha humilde intenção de lhe querer dizer que estamos perante um filme realmente excecional. À letra: não há nada que se pareça com "isto"..Inevitavelmente, a classificação de "comédia" esbarra com a seriedade que, por princípio, é atribuída às tais "reconstituições" dos mais variados eventos históricos. Enfim, mesmo pondo de lado o modo como o género cómico pode ser um filtro admirável da nossa perceção da história - ainda não nos esquecemos de Chaplin, pois não? -, acontece que Sokurov não nos dá tréguas e desafia a nossa capacidade de vivermos o cinema como uma maravilhosa máquina de reinvenção do mundo e das suas verdades..Afinal de contas, as personagens principais de Fairytale (em ameno diálogo, convém esclarecer) são Hitler, Estaline, Churchill e Mussollini - estão às portas do Purgatório e especulam sobre o seu destino e as convulsões mais ou menos perturbantes das suas memórias... Churchill é o único que tenta fazer valer alguns valores democráticos, mas sem grande efeito... Como se isso não bastasse para atormentar as nossas certezas sobre o que seja o cinema, também por lá andam Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte....Há, apesar de tudo, uma maneira mais simples - não necessariamente mais apaziguadora - de dizer tudo isto. Sokurov não filma exatamente personagens históricas, mas a persistência dessas personagens enquanto fantasmas da memória coletiva da história. Este é, de facto, um filme fantasmático em que as tragédias humanas, em particular do século XX - dos crimes dos ditadores à dinâmica das multidões -, nos reaparecem como factos concretos a assombrar o próprio cinema..Tudo isto permite-nos também perceber que os célebres efeitos especiais, que um lugar-comum mentiroso tende a apresentar como um "exclusivo" dos filmes de super-heróis, estão longe de ser propriedade privada da Marvel & Cª. Aliás, se outras razões não houvesse para descobrir Fairytale, as suas singularidades técnicas seriam suficientes..Sokurov trabalhou vários anos a partir de imagens de arquivo das suas personagens históricas, emprestando-lhes movimento e diversas expressões faciais - o que, bem entendido, reforça a sensação de um reencontro em que real e surreal são duas faces da mesma moeda. O mesmo se dirá, aliás, dos cenários virtuais, por vezes evocando os traços e também a sedutora imponderabilidade de algumas gravuras do italiano Giovanni Piranesi (1720-1778)..O filme surge no mercado português com o subtítulo, sem dúvida motivado, Sombras do Velho Mundo. Até porque, convém lembrar, este é mais um capítulo de todo um processo criativo que tem levado Sokurov a revisitar a história, nomeadamente a história europeia, através de filmes "em forma de pesadelo" - lembremos a trilogia constituída por Moloch (1998), Taurus (2001) e O Sol (2005), respetivamente sobre Hitler, Lenine e o imperador Hirohito..Importa, por isso, sublinhar a evidência contida no chamado título internacional: Fairytale porque, de facto, estamos perante um "conto de fadas" ou, mais precisamente, uma fábula. Não procurando "reproduzir" a história, o seu projeto confunde-se com o reconhecimento daquilo que, como numa fábula, alimenta a perturbação do nosso pensamento - por todas as razões, este é mesmo um filme fabuloso..dnot@dn.pt