A náusea

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É quando pensamos que já nada ou ninguém nos poderá surpreender que, inevitavelmente, se revela a surpresa maior. Umas vezes é boa, outras vezes, nem por isso. Às vezes olhamos, consternados, para o que se está a desenrolar à nossa volta, não percebendo se é real ou apenas uma brincadeira sem graça nenhuma. Tenho uma forma peculiar de lidar com surpresas desagradáveis. Atenho-me num pormenor mais ridículo ou aparvalhado (e acreditem que em situações surpreendentes muitas vezes impera o ridículo ou o aparvalhado) e ponho-me a remoer naquilo. Como, por exemplo, esta coisa de dizer algo através das palavras de outros. A arte da citação, portanto. Parece que está muito em voga no exercício político hoje em dia. Neste caso, a categoria mais difícil de todas: a citação em discurso oral. Não a domino de todo. Daí talvez que sempre me tenham fascinado aqueles que, para qualquer situação, logo lançam mão de uma qualquer frase criada e burilada por outros, para fazer vincar aquilo que pretendem dizer. Ou para mostrar o seu vasto recurso intelectual. Ou ambos.

Parecendo que não, manter na memória dezenas ou centenas de citações prontas a utilizar ainda dá um certo trabalho. E lembrar-se de as atirar no momento certo requer alguma pontaria. Mas é preciso cuidado. Há regras básicas para uma boa utilização da citação em discurso oral. Cada frase tem um contexto próprio e a reutilização numa situação alheia à sua criação obriga a cuidados de índole ética e histórica. Não se pode andar para aí a citar debalde. Melhor, não se deve. Mas, para mal dos pobres citados, o que se observa é que poucos são os que respeitam as regras da boa citação.

O que mais abunda, nos dias presentes, são pois citadores amadores. O citador amador caracteriza-se por utilizar citações de forma indiscriminada e descontrolada. Ao observá-los, fico na dúvida. Será que os amadores que recorrem a esta forma de expressão em segunda mão lêem livros para usufruir deles, ou para caçarem orações, que aprisionam e recuperam assim que lhes convenha? A maior parte nem sequer é muito boa nisso, porque dá ideia que ou tem um reportório muito limitado, ou não entende muito bem aquilo que leu, ou foi pesquisar num qualquer site de citações. E vai daí, estão reunidas todas as condições para o disparate. Alguns são tão amadores, tão amadores, que até repetem a mesma citação em diferentes ocasiões, porque a cabeça não dá para mais. Compreendo que a cabeça não dê para mais. Eu também tenho imensas dificuldades em memorizar frases inteiras, por mais que goste do que está a ser dito. Fica-me a ideia, mas não me ficam as palavras exactas. Por isso, refreio-me de recorrer ao empréstimo para não fazer má figura. Há quem não se consiga conter. E vai daí, pega na frase que sabe de cor e pespega-a à primeira oportunidade que vê. É precisamente nestes casos que a coisa, geralmente, dá para o torto. Entre o carrasco e a cara de asco, lá virá um pedido de desculpas mal engendrado.

Se é para citar Simone de Beauvoir, ao menos que se escolham frases mais interessantes. Não dá muito trabalho, é só pesquisar na net. Assim de repente, dei de caras com duas citações que me pareceram bastante interessantes, muito adequadas ao momento presente e que cairiam que nem ginjas, por exemplo, na Assembleia da República: «É horrível assistir à agonia de uma esperança» e «Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância».

Correcção: na última crónica, «Super-heróis desesperados», onde se lê «Marvel», dever-se-ia ter lido «DC Comics». As minhas desculpas pelo engano.

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