A não ver as gentes e o seu chão
Parece que é um país onde se discute se as polícias devem, ou não, salvar - sem mas nem meio mas - as pessoas aflitas, cercadas pelo fogo e avessas a deixar para trás a sua casa. Mas quem abandona em jeito de ir tomar chá a sua casa ("o meu chão", como diz uma velha camponesa noutra página deste jornal), quem? A meio da semana, ouvi um jornalista a perguntar ao ministro, em Monchique: "Não se passou aqui uma desmesurada preocupação com as vidas humanas, deixando tudo arder?" Na altura, cataloguei "desmesurada preocupação com as vidas humanas" na categoria de frases infelizes, tolice de que ninguém pode garantir estar livre. E estava-se em Monchique no calor de incêndios que ainda ardiam.
No dia seguinte, ouvi outro aparentemente precipitado jornalista - embora com aparente menos desculpa, pois ele estava em estúdio televisivo e refrigerado. Sobre o que chamou "o critério político no combate técnico ao fogo", esse jornalista desenvolveu este raciocínio: "Porque estão a tirar as pessoas de casa, mesmo contra a sua vontade?", perguntou ele. E ele respondeu: "Porque neste ano não pode haver mortos." E voltou a perguntar: "Porque se houver mortos o que acontece?" E respondeu: "Cai o ministro." Insistiu: "E a seguir?" E rematou: "Se calhar cai o governo." Como ele queria, demonstrou - em aturado diálogo do próprio consigo mesmo. Talvez se tivesse convencido.
Digo desde já, neste ano não poder haver mortos parece-me um bom plano anual. Se um governo tem esse plano e ainda por cima o aplica sem se vangloriar de que aquele plano é o dele, é raro e bonito. Provavelmente o jornalista no estúdio aplaudia, não criticava. Em todo o caso, eu prefiro assim a, em caso de tragédia, que ele dissesse: "Porque não salvaram as pessoas das suas casas cercadas pelo fogo? É que neste ano não podia haver mortos. Tendo havido, vai cair o ministro e se calhar o governo. Admirável o governo que não pensa só em si: não tentou salvar as pessoas, apesar de saber que isso o iria prejudicar!"
Houve muita gente a indignar-se com o processo de intenção que o jornalista emprestou à atual política governamental de salvar gente. Salvava, sugeria o jornalista (diziam os detratores que ele sugeria), porque António Costa e os seus só salvavam o povo porque, só assim, se salvavam eles... Tomara eu que o governo do ano passado - este mesmo governo de Costa e os seus - já soubesse dos novos tempos em que não só a prioridade mas o que nos resta quando há incêndios é mesmo só salvar vidas.
Porque a realidade da floresta portuguesa - por causa do governo atual e dos governos anteriores, dos políticos de todos os quadrantes e dos portugueses em geral - é um drama plantado. Acrescentado ao aquecimento global (esse, tirando a nossa quota-parte, da irresponsabilidade do mundo contra a qual não podemos fazer quase nada), o drama irá passar, cada ano, a tragédia. Logo, o mínimo que se pede aos governantes é a desmesurada preocupação com a vidas. E só. Estamos assim.
A menos que nos convençamos, de vez, de que a nossa floresta não pode continuar como está. Porque ela ou mata, ou cada ano nos remete para uma política exclusivamente dedicada a tentar não haver mortes. Da mesma forma que não disse o nome do jornalista do estúdio (foi o José Gomes Ferreira, da SIC), não digo o nome das árvores assassinas da nossa floresta (falo dos eucaliptos das celuloses), porque não quero alimentar a chicana com que este assunto, tão grande, tão grave, é tratado.
Volto ao chão, que a velha camponesa invocava e que eu citei no início da crónica. Na reportagem em Monchique, que se publica páginas adiante, no nosso caderno 1864, ela regressou à casa calcinada de que teve de fugir, na aldeia onde ela é a derradeira habitante. Havia um mealheiro no chão cheio de moedas de escudo. Pouco depois, chegou o filho que veio saber da mãe. Conta o repórter Ricardo J. Rodrigues: "(...) o homem agacha-se para contar as moedas, era da sua infância aquele tesouro." E andamos nós nisto, a não ver as gentes e o seu chão.