A mulher que inventou a minissaia

<b>MARY QUANT </b>dispensa apresentações. Revolucionou a moda, contribuiu para a emancipação feminina e tornou-se um ícone mundial. E agora, com 78 anos, escreveu uma autobiografia.
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«O novo ethos era: se queres, faz tu mesmo. E o que nós queríamos era arte, teatro, cinema, design, moda, comida, sexo e sobretudo música e dança.» As palavras estão no novo livro de memórias, Mary Quant: My Autobiography, em que dá voz à mulher imortalizada pela iconografia da moda como a inventora da minissaia. «Eu queria desenhar roupa. Queria ir para uma escola de moda, mas os meus pais opunham-se dizendo que não tinha futuro.» Mal os convenceu, Mary Quant lançou-se no sonho sem imaginar que ia erguer de raiz um império internacional.

«Eu era obcecada por moda. Sempre fui. Costumava herdar a roupa de uma prima que nunca estragava os vestidos. Sentia que não eram eu e detestava isso.» Na autobiografia publicada aos 78 anos - tempo mais do que suficiente para fazer balanços -, a estilista londrina passa em revista a infância, as aulas na Goldsmiths Art School, a relação tempestuosa com o marido Alexander Plunket Greene (eternamente infiel, mas o amor da sua vida), a abertura em 1955 da sua primeira loja de roupa em Kings Road, a euforia dos anos 1960, o fascínio do Japão pelas suas criações, a doença de Alexander (aos 57 anos, vítima do álcool que não conseguiu largar) e até a importância do nome na construção de uma marca: se não se chamasse Mary Quant, com o M graficamente imponente e o Q a destilar força, talvez a assinatura não ficasse tanto no ouvido e as coisas pudessem ter sido diferentes. Ou talvez não, já que a estilista lançou uma moda que refletia os humores do seu tempo: impulsionou as saias curtas, vestidos usados por mulheres de todas as classes sociais, materiais inovadores como o vinil e os plásticos. Ousou nas cores fortes e nas linhas direitas, arrogantes e sexy. Ninguém imagina os loucos anos 1960 sem o London look inventado por Quant, as suas botas pelo joelho, as pernas a descoberto, a maquilhagem carregada nos olhos e o corte de cogumelo idealizado pelo cabeleireiro Vidal Sassoon, a cujos empregados e salões continua a recorrer ainda hoje.

Nascida no subúrbio londrino de Blackheath a 11 de Fevereiro de 1934, descendente de pais galeses, ambos professores, Mary cresceu a imaginar cores e combinações de peças, atormentada pelo vestuário que lhe impunham e por aulas de ballet dadas num género de francês que lhe parecia que não seria útil mais tarde. «As meninas costumavam ser obrigadas a ter aulas de dança», explica, grata pela coincidência que, ainda assim, ditou um momento de viragem na sua vida, precisamente na academia: um dia, olhando através de uma das portas, viu uma aula de sapateado a decorrer. No meio da turma, a visão chique de uma rapariga de cabelo arredondado, camisola justa, saia preta plissada curta e sapatos de couro apertados nos tornozelos. Foram as meias brancas que usava, porém, a fazer toda a diferença. Na moda, mudar o foco significa ter algo completamente novo. Neste caso pernas. «Ela era mais velha do que eu, teria 8 ou 9 anos, e o look era tudo o que eu adorava», recorda. «Comecei a tentar fazer as minhas próprias roupas. Aquilo era o que eu mais queria para mim: desenhar peças e fazer sapateado.» E nunca mudou de ideias, pelo menos na parte respeitante ao design de moda.

Descontente com o vestuário disponível para uso próprio e de amigos, numa altura em que concluíra o curso de Arte e ganhara experiência como aprendiza a fazer chapéus de senhora, Mary Quant associou-se ao futuro marido (que conhecera na faculdade) e a um amigo comum, Archie McNair, para em novembro de 1955 abrir a Bazaar, uma loja de roupa na Kings Road - uma das ruas mais animadas da época, posteriormente associada também ao movimento punk. Ciente de que a moda devia ser acessível a todos e refletir a contestação dos valores sociais instituídos, a jovem decidiu criar as peças que vendia na loja, desenhando modelos arrojados, ancorados no movimento pacifista e no desejo de libertação das mulheres. Viviam-se os tempos da invenção da pílula e da frustração dos jovens, com escolas de arte e colégios a tornarem-se o fulcro de ideias explosivas e a nova geração que parecia ligada a uma corrente elétrica de esperança.

O sucesso foi de tal ordem que Quant esgotava os stocks do que quer que concebesse, fossem meias, sapatos, vestidos, gabardinas, malas, camisolas de malha canelada, cintos largos, roupa interior, fatos de banho ou tops de crochet. Ainda hoje não se sabe ao certo se foi ela a criadora da minissaia, igualmente atribuída ao designer francês André Courrèges e a John Bates, o responsável por vestir a atriz Diana Rigg em Os Vingadores. Ela própria resume a questão de forma pragmática: «Talvez Courrèges tenha feito a minissaia primeiro mas, se o fez, ninguém a usava.» Para lá da diminuta peça de pano, Quant reclama os créditos da máscara à prova de água para pestanas, dos soutiens sem armação, das capas de edredão e da maquilhagem masculina.

«Mary Quant é um marco incontornável na história da moda», assegura Anabela Becho, conservadora de moda do Museu do Design e da Moda, em Lisboa. «A ela devemos a popularização dos símbolos da swinging London da década de 1960: a minissaia, os hot pants, as collants coloridas e a máscara waterproof. Desenvolveu linhas de acessórios, lingerie e cosméticos (inspirando-se nas cores fantásticas dos lápis Caran d'Ache) e foi uma das pioneiras do conceito de look total.» Tal como Coco Chanel e Christian Dior, dois outros nomes que revolucionaram o universo da moda, Quant nasceu no local certo, na época exata e com talento de sobra para várias vidas.

«Chanel alterou profundamente os conceitos estéticos, mudando para sempre o universo feminino: libertou o corpo de espartilhos, criando uma silhueta cortada a direito, e adaptou elementos do vestuário masculino à roupa de mulher», concretiza a especialista. Nos anos 1950, Dior voltou a espartilhar o corpo feminino com o estilo New Look e Chanel ripostou contra as cinturas marcadas e as saias rodadas da rival, por considerá-las uma idealização do corpo feminino que não correspondia à realidade das mulheres. «Na década seguinte, à semelhança de Chanel, Mary Quant voltou a libertar o corpo da mulher, personificando com as suas criações a essência dos fervilhantes anos 1960 - uma moda jovem, descontraída e simultaneamente sexy, elegante e feminina. O estilo que criou estava muito próximo da vida real», conclui a conservadora.

Do primeiro marido, Alexander Plunket Greene, Quant diz ter sido um «mulherengo dedicado que bebia de mais, infiel e leal ao mesmo tempo», com a figura de Mick Jagger e Paul McCartney num só homem. «Ia vestido com os pijamas de seda dourada da mãe e calças cor de vinho justas pelo tornozelo para a Goldsmiths Art School, onde eu estudava ilustração na altura. Tinha o cabelo longo, sedoso, cortado à altura do maxilar e caído sobre um dos olhos.» Conheceram-se num baile, e foi luxúria à primeira vista. E amor, que lhes permitiu preservar o casamento até à morte dele, com Mary a desculpar-lhe as traições e Greene a idolatrá-la acima de todas as mulheres.

«Andava com um trompete de jazz que tocava no comboio entre Charing Cross e New Cross, muitas vezes andando para trás e para a frente para poder praticar mais. Era fã absoluto de Louis Armstrong e um trompetista muito bom», enaltece a estilista, com um enlevo que ainda hoje usa para falar dele com o atual companheiro, Antony Rouse. O antigo amigo do casal aproximou-se de Quant na viuvez e acabou por ficar a viver com ela na casa de campo de Surrey que Alexander herdou de um familiar, ambos a partilharem agora a cama que Mary e Planket compraram quando se casaram. E as saudades de Greene, que à sua maneira também marcou uma época. «Era tão divertido estar com ele. Foi o melhor dançarino de sempre. E terrivelmente bem parecido.» Foi essa paixão, por um homem e pela própria vida que se converteu na arma mais poderosa de Mary Quant.

A senhora dos pincéis

À luz do êxito da primeira loja Bazaar em Chelsea, Mary Quant abriu uma segunda em Knightsbridge em 1957, quando Mary Quant se casou com Alexander. Cinco anos mais tarde, exportava para os EUA e recebia pedidos de todo o mundo, internacionalizando a marca com o seu nome. Em 1966, lançou-se na cosmética, publicou a primeira autobiografia (Quant By Quant) e foi nomeada membro da Ordem do Império Britânico pelo contributo dado à indústria da moda - na cerimónia no Palácio de Buckingham usou uma minissaia da sua autoria e luvas de condutor. A estilista iniciou os anos 1970 no papel de mãe - de Orlando, seu filho único - e ao longo de duas décadas expandiu o negócio, somou prémios e publicou livros ensinando as mulheres a vestirem-se e a pintarem-se. Foi nesses anos, aliás, que passou a criar para outras empresas e a dedicar-se essencialmente à cosmética, caraterizada em grande parte pelo design dos produtos e ornamentada com a margarida estilizada que se tornou a imagem de marca. Em poucos tempo, abriu 150 filiais no Reino Unido, mais de trezentas nos EUA e milhares de pontos de venda por todo o mundo. Em 1994, aos 60 anos, lançou ainda uma coleção de acessórios e cosméticos. Mary Quant: My Autobiography é editada pela Hardcover e custa 14,99 (18 euros) libras na Amazon.

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