A mulher que fala mais depressa do que a própria sombra
Tal como Lucky Luke dispara mais depressa do que a própria sombra, a Mirna Queiroz fala mais depressa do que qualquer pessoa que eu alguma vez tenha ouvido, à exceção daqueles finais de anúncios publicitários de carros em que dizem coisas a correr como "condições não aplicáveis, etc., TAEG, etc., etc.", frases de que retemos tanto como se estivessem escritas num corpo de letra abaixo de minúsculo.
Quando a paulista Mirna fala, pelo contrário, normalmente percebo tudo e o que não entendo à primeira pergunto e ela volta atrás e recomeça naquele tropel de palavras com sentido. Conheço-a há tantos anos que nem me dou ao trabalho de contar, até porque isso é absolutamente irrelevante. A primeira vez que nos vimos foi em Lisboa, quando ela e a poeta brasileira Dora Ribeiro me convidaram para um projeto que, ao fim de várias reuniões, ficou por ali. Na altura, elas eram jornalistas e correspondentes de órgãos de informação estrangeiros.
Posso dizer hoje que aquela mulher pequenina e de olhos sempre abertos e curiosos é uma das pessoas que mais têm contribuído para pôr a conversar gente de todos os pontos do mundo que fala e escreve e canta nesta nossa língua. Inventou e pôs de pé há vários anos uma ótima publicação digital dedicada à cultura, de seu nome Revista Pessoa, que tricota uma manta de palavras do Brasil, de Portugal e de África.
Pensei isto quando vi, no Facebook da Mirna, fotografias tiradas em Luanda no Festlab, curiosa maneira de juntar num nome a ideia de laboratório com aquilo que também é: um Festival Literário Luso-Afro-Brasileiro, com participantes de Angola, Brasil, Portugal, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Nesse post ela não reverenciava autores consagrados, falava das novas gerações que dão a volta à escrita e, sobretudo, que falam sem papas na língua. Porque, diz ela - que está numa das fotos no palco com António Fonseca, Domingas Montes, Eugénia Kossi e Pedro Janja, na sessão de abertura do festival (conversa com a qual, avisa,"poderia ter varado a noite") -, "é do público que sairão as respostas para os problemas e contradições que há séculos nos atravessam. São esses jovens de Angola, como os do Brasil, o elemento emergente, utópico, que sinaliza para qualquer possibilidade de transformação."
Ela poderia ter varado aquela noite discutindo e acolhendo novas ideias, isso é garantido. No palco estavam um poeta, António Fonseca; uma escritora, Domingas Montes, que mantém o blogue Mwelo Weto, onde aborda "questões da cultura africana em geral e da cultura angolana em particular, mostrando aspetos do pensamento, da história, do imaginário, da língua, da literatura, dos hábitos e costumes e da filosofia e das crenças do enorme e diversificado povo africano"; uma linguista - Eugénia Kossi, a própria Mirna e todos eles com a moderação do professor universitário Pedro Janja.
Por trás de todas as declarações políticas e das descobertas de "oportunidades de negócio" e de "mercados emergentes", existe há largos anos gente a criar uma teia de contactos mais ou menos informais que aproxima criadores, críticos e teóricos. É assim com a revista Caliban, de Maria João Cantinho, e com uma série de festivais, publicações, exposições, prémios.
Estes encontros vão dando frutos, e só nesta semana nasceram mais dois. A revista Granta, que já tinha uma edição portuguesa, galgou - apetece-me dizer "varou" - as fronteiras transatlânticas, pelas mãos laboriosas da editora da Tinta da China Bárbara Bulhosa e sob a direção de Carlos Vaz Marques. Do outro lado do mar nasceu a revista Olympio, dirigida pela poeta, escritora e académica brasileira Maria Esther Maciel, que vem apresentá-la a Lisboa dentro de dias.
Como se isto fosse pouco, ainda aparece uma boa notícia de Cannes, a envolver Portugal e o Brasil. Depois do Prémio da Crítica para Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt pelo filme Diamantino, a obra Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, de João Salaviza e Renée Nader Massora, sobre a tribo indígena Krahô, ganhou o prémio especial do júri na secção Un Certain Regard. Tão bom.
Mirna, estou à espera do teu regresso, no granito de Castelo Branco ou na nossa Lisboa, para vararmos um dia ou uma noite em conversas.