A mulher que citou O"Neill e seguiu o sonho de Barroso
Final de campanha eleitoral, em março de 2002, Margarida Sousa Uva subiu ao palco do gimnodesportivo de Tondela e citou um poema de Alexandre O"Neill, "Sigamos o cherne", para apresentar algumas razões para se votar no homem que na altura liderava o PSD. A história de um peixe que tem um sonho e não desiste de o seguir passou a fazer parte do percurso político de Durão Barroso, que nessas eleições foi eleito primeiro-ministro e dois anos depois foi designado presidente da Comissão Europeia.
"Eu acredito que o sonho só é verdadeiramente sonho quando é grande e é por essa tua imensa capacidade de sonhar e de sonhar com um Portugal próspero, mais justo e mais respeitado pelos nossos parceiros europeus que eu também vou votar em ti no dia 17 de março", disse Margarida Sousa Uva, continuando o discurso de uma forma singular: "De certa maneira, foi ingrata a maneira de estar aqui a vender o meu peixe, mas o Zé Manel, se fosse peixe, era um cherne."
Durão sorriu, abraçou a mulher e comentou no mesmo registo: "Confesso que isto de me compararem com um peixe só podia vir da minha mulher." Depois foi a vez do então líder social-democrata recitar um poema que lhe foi passado por alguém entre a assistência. "Mulher, dizem que é feio pecar/ mas só não pecam os santos/ para mim, pecado/ é fechar os olhos aos teus encantos."
Margarida Sousa Uva, 60 anos, morreu nesta quinta-feira, em casa, vítima de doença oncológica (cancro do útero), diagnosticado em 2014.
Vice-presidente da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas, Margarida Sousa Uva falou publicamente da luta no ano passado quando surgiu de cabelo curto no lançamento de um livro. "Ainda não está tudo ultrapassado, mas, se Deus quiser (...) Tenho esperança, mas, acima de tudo, tenho uma enorme vontade de viver", disse, realçando o apoio da família durante os tratamentos. "A Margarida, como todos lhe chamávamos, será sempre lembrada pelo seu bom humor, coração, humildade e amor às crianças", escreveu a Associação no Facebook.
O primeiro-ministro, António Costa, já enviou as condolências a Durão Barroso, segundo avançou o gabinete de Costa à Lusa. Também o PSD, em nota à comunicação social, diz ter recebido "com grande consternação a notícia".
Durão Barroso e Margarida Sousa Uva conheceram-se em 1975, em pleno PREC. Contou o ex-presidente da Comissão Europeia que tudo começou na cantina da cidade universitária, quando ambos tinham 19 anos. Durão estudava na Faculdade de Direito, era presidente da Associação de Estudantes e militava no MRPP. Margarida, que era neta do chefe do Estado-Maior da Armada entre 1960 e 1963, quando Salazar estava no poder, estudava na Faculdade de Letras, situada a pouco metros da de Durão.
Casaram-se em 1980, na Sé de Lisboa, e tiveram três filhos. "Graças à minha mulher, que abdicou de uma carreira para fazer dos filhos a sua causa, é possível estabelecer uma relação saudável", disse há uns anos, à revista Gente, o atual chairman do banco de investimento norte-americano Goldman Sachs.