A Moscovo de Lenine e um diplomata português em fuga

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No princípio de abril estive em Moscovo por motivos profissionais e institucionais, na minha quarta deslocação à capital russa depois do 25 de Abril, e confesso que nada vi nas ruas, no hotel, no metro e até em espaços museológicos que me fizesse lembrar a comemoração do centenário da Revolução Russa. O sentido do marketing político e a relação pragmática com a sociedade de consumo recomendaria uma presença visual mais forte desse imaginário que reflete mudanças profundas na história da Rússia e do mundo. Mas fiquei com a sensação, talvez próxima de uma complexa realidade política e psicológica, de que o país de Putin não se revê na Rússia revolucionária de Lenine e bolcheviques, embora o presidente seja resultado desse contexto e do quadro político que ele implantou. Vi Moscovo passar ao largo de Lenine, imóvel no mausoléu que ele e a viúva não desejavam que fosse a sua derradeira morada propagandística. Preferia ter sido sepultado junto da mãe.

Hoje discute-se sobre a efetiva preponderância de Lenine no processo revolucionário e o papel de Trotsky e Estaline. É evidente que Lenine, após intensos anos de exílio, foi o motor ideológico e político que pôs em marcha o processo da conquista do poder que conferiu ao marxismo a dinâmica revolucionária que o faria transformar a história do país gigante e feudalizado e criar equilíbrios que perdurariam até ao colapso da União Soviética com Mikhail Gorbachev.

Em abril fiquei com a convicção de que a Rússia de Putin desejava passar ao lado da mitologia leninista, reduzindo a imagem do líder de 1917 e anos seguintes, até 1924, a uma passiva dimensão simbólica que não pode pôr em causa equilíbrios políticos e ideológicos que o momento atual impõe. Estive em Moscovo na altura dos atentados em São Petersburgo e vi nas ruas, com centenas de agentes policiais mobilizados, a complexidade da Rússia de hoje.

Curiosamente, na Cuba que foi até há pouco de Fidel Castro, Che Guevara está muito mais presente na galeria de mitos como se o quotidiano sem ele, meio século após a morte, ficasse tristemente vazio. Em Moscovo, a memória dos anos de comunismo está fugazmente presente nas matrioskas que nos mostram, sobrepostos, os rostos de Lenine, Estaline, Brejnev e Gorbachev. E até há uma com os rostos de Che no tempo heroico da Sierra Maestra e da consolidação do poder revolucionário em Havana.

A Revolução Russa ocorreu há um século e contribuiu para mudar o mundo. Houve um português, o diplomata Jaime Batalha Reis (1847-1935), que a viu de perto, por ser embaixador em Petrogrado. Estava ali acompanhado por duas filhas adultas e, sendo republicano, não nutria particular simpatia pela transformação política operada no país. Não gostou do que viu e viveu. Viu lojas e casas assaltadas, teve fome e frio e viu assassinatos. Teve medo e disse-o em português nos relatórios enviados a Lisboa. "Vivo com a família há pelo menos seis meses em perigo de vida permanente agravada por falta de dinheiro. Tenho tido fome e frio. Terei de partir inopinadamente com dificuldade. Suplico a V. Exa. que leia meu último telegrama sobre assunto não respondido e mande pôr urgentemente à minha ordem no Provincial National Bank Londres pelo menos mil libras esterlinas extraordinárias."

O seu senhorio octogenário, que fizera parte da corte do imperador, foi enforcado ao fim da tarde na sala de jantar. Batalha Reis estava exausto e aterrorizado. Queria fugir e chegar a Lisboa. Tinha 66 anos, em fim de carreira e chegou a conhecer Lenine, na presença de outros embaixadores, em clima de grande tensão. Só o jornalista comunista norte-americano John Reed se movimentava em Moscovo com liberdade e conhecimento profundo, o que lhe permitiu escrever a obra-prima Dez Dias Que Abalaram o Mundo, que ainda se lê com emoção e prazer. De Lisboa chega ao diplomata Batalha Reis pouco amparo e consolo. Na imprensa portuguesa o tratamento jornalístico de acontecimento histórico é superficial e frequentemente incorreto. Ainda ninguém lhe chama Revolução Russa.

Lenine e os bolcheviques triunfaram e o resto é o que a história registou e que mudou em aspetos tão profundos a relação dos povos em vários continentes. Estava lá um português, mas de partida, no meio de grande sofrimento.

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