A morte do Príncipe (1)
Preparara-se para ela há muito tempo. O enigma indecifrável perseguira-o toda a vida, obsessivamente, tinha ele 14 anos, a morte da avó. Desde 1981, sabia que estava doente sem perdão nem cura: um cancro da próstata com prognóstico fatal, que escondeu de tudo e de todos, até dando ordens ao seu médico para falsificar os boletins clínicos que, em nome da "transparência" e da "moral republicana", ele próprio impusera como condição para as candidaturas aos cargos políticos. Em 1992, não pôde mais adiar uma intervenção cirúrgica e só então, numa histórica conferência de imprensa, desvendou ao mundo o mal que o devorava.
Abriu-se na altura um aceso debate sobre se estaria, ou não, em condições de concluir o seu mandato, mas ele, obviamente, jamais se demitiria - e, ou não o conhecessem, jamais se demitiria por causa de uma doença fatal. Era um sobrevivente, sobrevivente de muitas batalhas, que sofrera várias derrotas e se levantara sempre, que resistira aos maiores escândalos, desde a revelação do seu passado sombrio às escutas telefónicas a actrizes famosas, passando por uma operação desastrosa dos serviços secretos contra um navio da Greenpeace, pelo desvendar de financiamentos políticos ilícitos e de negócios escuros do seu filho, tudo culminando em dois estranhos suicídios de amigos bem próximos, seus colaboradores.
No balanço dos mandatos, exaltavam a união das esquerdas e a abolição da pena de morte, mas soube-se depois que na jeunesse française fora um partidário convicto de Vichy e de Pétain e que, nos anos vindouros, continuou a ser íntimo das extremas-direitas: nos anos 1980, enquanto levava os comunistas para o poder, aniquilando-os para todo o sempre, deu um impulso decisivo ao advento e à expansão da Front national, que usou para enfraquecer a direita moderada e liberal, em benefício dos socialistas ou, melhor dito, em benefício de si próprio. Quanto à pena de morte, veio a lume que, em 1956 e em 1957, quando era ministro da Justiça de Guy Mollet, e contrariando a opinião dos seus colegas de governo, autorizara pessoalmente a execução de 45 condenados por terrorismo na Argélia, alguns dos quais provavelmente inocentes. Um sobrevivente, soldado de muitas guerras. Os médicos tinham-lhe dado um ano, um ano e meio. Durou quinze.
Nos tempos finais, retirou-se em silêncio, mas não em paz. Não foi para a velha casa da Rue de Bièvre, que partilhava desde 1971 com a sua mulher (e que foi posta à venda em Junho do ano passado...), preferindo o apartamento frio e asséptico que a República pusera à sua disposição, na Rue Frédéric Le Play, um economista do século XIX que se notabilizara por estudar as condições de vida miseráveis das classes trabalhadoras. Escolhera morrer aí por várias razões, mas acima de tudo para poder partilhar os últimos instantes com a sua amante de 32 anos, Anne Pingeot, nascida de uma família burguesa e católica de Clermont-Ferrand, dezassete anos mais nova do que ele, filha de um grande industrial (e inventor dos isqueiros a gás), neta e bisneta de generais e marechais, curadora de escultura no Museu d'Orsay, uma das obras mais emblemáticas dos dois longos septenatos presidenciais, ainda hoje um recorde de longevidade no Eliseu.
Ali, na Rue Le Play, estava a dois passos do Champ-de-Mars, onde dava longos passeios na companhia de Baltique, uma cadela labrador que ele lamentava, enternecido, ser o cão mais mal-educado de França. Anne parecia ser mais obediente e, para manter as aparências e o perfil discreto, entrava no prédio pela porta de serviço. Mazarine Marie, a filha de ambos, cuja existência só foi revelada em 1994 por uma indiscrição da Paris Match, disse um dia, sabiamente, que a mãe fora heroína de um filme que nunca ninguém iria ver. À entrada do apartamento, em lugar de estilo, um retrato gigantesco, a carvão, do sobrevivente agora moribundo, o homem a quem a imprensa chamava Dieu.
Confessara a um amigo não temer a morte, antes a impossibilidade de não viver mais. Consciente disso, começou a empreender o ritual das despedidas, a coreografia amarga do imenso adeus: visitou Nièvre, por onde foi deputado de 1946 a 1981, para votar nas eleições municipais; viajou com Anne até Veneza, a tão amada Veneza, ficando hospedado em casa de um amigo de longa data, o pintor esloveno Zoran Mušić, dono de um soberbo apartamento palaciano com vistas para o Grande Canal. Mais importante do que isso, procurou legar à posteridade uma imagem radiosa e gloriosa da sua pessoa, mas Mémoire à Deux Voix, o produto das suas conversas com Elie Wiesel, desapontou-o, o mesmo sucedendo com Mémoires Interrompus, saídas da pena de Georges-Marc Benamou, um jovem jornalista de esquerda que mais tarde escreverá Le Dernier Mitterrand, adaptado ao cinema por Robert Guédiguian num filme com o sugestivo título Le Promeneur du Champ-de-Mars.
Em 8 de Maio de 1995, no dia seguinte à eleição do seu sucessor, viajou até Berlim para as cerimónias comemorativas do 50.º aniversário do Dia D. Abandonando o discurso escrito que tinha preparado, falou de improviso e teve palavras condescendentes para com os soldados nazis, o que suscitou intenso clamor na imprensa alemã e francesa, algo que só pode ser explicado por não o conhecerem, por ignorarem que, para ele, o desejo de reconciliação entre os povos e entre as nações se sobrepunha, sem margem para dúvida, a imperativos de justiça e verdade histórica. Os seus últimos anos serão de grande aproximação ao anterior inimigo e, não por acaso, é nessa altura que escreve o ensaio germanófilo De l'Allemagne, de la France, como não é por acaso que a sua visão de uma Europa unida sempre se baseou, essencialmente, no eixo franco-alemão, com os demais países em papéis pouco mais do que secundários. As mãos dadas com Helmut Kohl, em 1984, no aniversário da batalha de Verdun, ou a lágrima a escorrer pelo rosto do chanceler alemão, nas cerimónias fúnebres na Notre-Dame, são imagens eloquentes da afinidade electiva entre os dois países, sem prejuízo de o francês saber manter as distâncias: além de, com Margaret Thatcher, ter reagido com as maiores reservas à queda do Muro e aos projectos de reunificação germânica, quando Lionel Jospin defendeu que o seu país deveria pedir desculpas pela deportação dos judeus nos tempos de Vichy, recusou terminantemente com o argumento de que a França não era a Alemanha, nem Pétain era Hitler.
No final de 1995, iniciou-se o declínio derradeiro. Quando dois dos seus cronistas oficiosos o foram visitar, avisou-os com o proverbial humor corrosivo: "Não se sentem demasiado perto de mim, sou mais radioactivo do que o atol de Mururoa." Depois, confessou-lhes que Kohl lhe telefonava regularmente - ainda que não tanto como Arafat, acrescentou... - e em seguida flagelou acidamente, como era hábito, todos os colegas da política republicana: Michel Rocard ("foi um erro nomeá-lo... não fez nada!"), Raymond Barre ("simpático, mas um falhado"), Giscard d'Estaing ("completamente antiquado"), Michel Debré ("um medíocre"), Jacques Delors ("zero"), Nicholas Sarkozy ("tem talento para morder e para trair, mas isso não chega") e Édouard Balladur ("raramente encontrei uma pessoa tão má como eu, mas como é que ele consegue ser ainda pior?").
A 7 de Setembro, embarcou no Concorde rumo a Nova Iorque. Apesar da doença, aceitara o convite de George Bush para, em conjunto com quatro reformados célebres - ele, Mikhail Gorbachev, Margaret Thatcher e Brian Mulroney, antigo primeiro-ministro do Canadá -, participar numa conferência sobre a Guerra Fria, em Colorado Springs. No sumptuoso Broadmoor Hotel, falando para uma plateia de milionários norte-americanos, afirmou que a reunificação alemã tinha sido inevitável e que fora pacífica apenas porque o líder soviético assim o quisera.
Mas reservou os principais encómios para Margaret Thatcher, uma mulher que sempre admirou, não sem laivos de alguma misoginia. Ainda assim, e, apesar das óbvias divergências entre ambos, encantava-se com a imensa fibra da Dama de Ferro e, acima de tudo, com a sua espantosa capacidade de transformar os desaires em triunfos. À semelhança dele, que em 1947, aos 30 anos, fora o ministro mais jovem da história de França e que foi onze vezes ministro na IV República, o que não o impediu de ser derrotado por duas vezes nas presidenciais - em 1965, por De Gaulle, em 1974, por Giscard -, acabando por triunfar em 1981, no sufrágio retumbante que o tornou o primeiro socialista a chegar ao Eliseu, onde empreendeu um vasto programa de nacionalizações na indústria e no sector financeiro e fez que, em 1983, um em cada quatro franceses trabalhasse para o Estado.
De regresso a França, uma paragem em Nova Iorque, cuja pureza arquitectónica sempre o deslumbrou. A etapa, contudo, veio a mostrar-se desgastante e penosa: após uns quinze minutos a passear nas imediações do Waldorf Astoria, os guarda-costas tiveram de o levar para o átrio de um banco, onde esteve sentado quase uma hora a recuperar o fôlego. Ao chegar a Paris, a sua primeira decisão foi aprovar a criação de uma fundação com o seu nome, à semelhança do que fizera o arquirrival Charles de Gaulle, sendo o Instituto François Mitterrand financiado, à americana, com generosos e vultuosos donativos de benfeitores privados.
Em 26 de Outubro de 1995, celebrou o seu 79.º aniversário em casa, na companhia de Anne Pingeot. Uma semana depois, voou até Latche para, com atraso, comemorar os anos de casamento com a mulher, Danielle, uma filha de professores que entrara para a Resistência francesa aos 17 anos e com quem Mitterrand se casou em Outubro de 1944, pouco depois da Libertação. Considerada a "mão esquerda" do presidente, Danielle notabilizou-se pelo ardente apoio à causa dos direitos humanos e do terceiro-mundismo, assumindo posições a favor de Fidel Castro, dos sandinistas da Nicarágua, do comandante Marcos do México, dos povos tibetano e curdo ou dos separatistas sarauís, o que, além da ira dos governos de Ancara ou de Pequim, criou frequentes incómodos entre o Quai d'Orsay e o Eliseu.
O casal teve três filhos, mas um deles, Pascal, morreu ainda criança, tragédia da qual Mitterrand jamais disse uma palavra ao longo da vida. Em Latche, nas Landes, François e Danielle tinham uma residência de férias, adquirida em 1965 ao barão d'Etchegoyen, e aí conseguiram juntar 45 hectares à casa original do século XVIII, formando uma vasta propriedade que chegou a acolher líderes mundiais como Gorbachev, Kohl ou Shimon Peres (mais tarde, veio a saber-se que Mitterrand tinha outra propriedade em Gordes, no maciço do Luberon, onde passava largas temporadas com Anne e Mazarine, como também se soube que, além de Anne, manteve uma ligação clandestina e prolongada, entre 1980 e 1995, com a jornalista sueca Christina Forsne, bem menos discreta do que a sua homóloga francesa, a ponto de, numa noite na década de 1990, ter gritado à porta de uma esquadra da polícia próxima do Eliseu que era amante do presidente).
Em Outubro, já tinha dificuldades em andar. Num fim-de-semana, teve ainda forças para visitar André Rousselet, seu antigo chefe de gabinete, empresário de sucesso e fundador do Canal Plus, no luxuoso Beauvallon, sobranceiro ao mar de Saint-Tropez, onde tinha passado o seu primeiro Natal após a lendária fuga de 1941. Não muito depois, fez uma viagem de despedida a Gordes, mas pouco mais saiu de casa. Mesmo nos breves passeios no Champ-de-Mars, era seguido por um guarda-costas com um banco portátil, para que Deus pudesse descansar no caminho da eternidade. Em regra, porém, o percurso durava muito menos do que isso e, ao fim de alguns minutos, regressava ao apartamento asséptico da Rue Le Play.
Em tempos, fizera amizade com Marie de Hennezel, uma psicóloga especialista em cuidados paliativos e na arte do morrer, a quem chegou a escrever o prefácio para um livro, Diálogo com a Morte, onde disse que "a morte pode fazer com que uma pessoa se torne naquilo para que foi chamada a ser; ela é, talvez, no pleno sentido da palavra, uma realização". Mas agora não era com os outros, com os 45 executados de Argel - era com ele, não e muito mais do que um prefácio. Marie de Hennezel aconselhou-o a definir um conjunto limitado de objectivos e tarefas a cumprir antes da partida. Para François Mitterrand, o derradeiro e mais ardente desejo era regressar ao Egipto, onde, praticamente desde 1980, passara todos os Natais, ficando alojado no Old Cataract, em Assuão, nas margens do Nilo.
Os exames médicos feitos em meados de Dezembro tinham sido inconclusivos, mas François Maurice Adrien Marie Mitterrand sabia que o tempo lhe escapava, minuto a minuto. Com o apoio do seu médico pessoal, Jean-Pierre Tarot, decide empreender a última jornada. Na véspera de Natal, embarca com Anne e Mazarine e um conjunto de amigos num avião que Hosni Mubarak pusera à sua disposição. A visão do Nilo, contemplado a partir da varanda da suíte presidencial do Old Cataract, animou-lhe o espírito, ergueu-lhe a alma, e um dos companheiros de viagem, André Rousselet, ficou deleitado ao ver o ex-presidente, pleno de energia, cortejar-lhe a mulher, a belíssima Anouchka. Passaram o dia de Natal a navegar no rio a bordo de uma faluca, com ele sozinho, sentado na proa, à sombra, perdido nos seus pensamentos. No dia seguinte, ressentiu-se, passou o dia no quarto e, na manhã de 29, telefonou a Mubarak, pedindo-lhe desculpas por não poder ir ao almoço para o qual o presidente egípcio o havia convidado. Sentia-se pior, Mazarine queria regressar a Paris para ir ter com o namorado. Na tarde desse dia, o jacto presidencial de Hosni Mubarak levou-os de volta a Biarritz.
Depois, chegou Janeiro. E, com Janeiro, as metástases no cérebro.
(Continua)
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.