Entre as razões que levaram especialistas na história da literatura, como o semiólogo Bakhtin ou o crítico Bloom, a considerar Dom Quixote de La Mancha a mais fundamental de todas as obras está o seu incomparável pioneirismo. Há até quem defenda que todos os romances posteriores reescrevem Dom Quixote ou o contêm implicitamente..É a primeira narrativa conhecida de segundo grau, porque as personagens são mais importantes do que a ação e influenciam-na, ao contrário do que era tradição à época; e de terceiro, porque ação e personagens transformam-se mutuamente pela primeira vez na história da literatura..Além de ser considerada, por alguns, a obra definitiva do humor, é também o marco zero do realismo, porque não só explica que Dom Alonso Quijano, o Dom Quixote, não é um herói, como defende que não há heróis, inaugurando o anti-herói na literatura. Tornou-se ainda, sublinha Bakhtin, precursora do niilismo por não acreditar em nada. No entanto, talvez a sua faceta mais extraordinária tenha sido, ainda de acordo com o semiótico russo, introduzir a polifonia na ficção: isto é, o confronto entre ideias e visões do mundo..Uma faceta ainda mais extraordinária se tivermos em conta que hoje, 413 anos depois da primeira edição madrilena, o ser humano é ainda tão monofónico: reduzido, portanto, a uma única voz, ou seja, à infame "bolha". O Brasil, em particular..A monofonia confunde-se, embora não se esgote nela, com a crise económica e de credibilidade da comunicação social tradicional. Jair Bolsonaro, já aqui se disse, escolheu o jornal Folha de S. Paulo como inimigo por ter trazido meia dúzia de reportagens antipáticas à sua candidatura durante a campanha eleitoral. A Folha, que a direita chama de "Foice de São Paulo" é a mesma que a esquerda apelidou de "Falha de S. Paulo" por causa de uma reportagem prejudicial a Dilma Rousseff, nas vésperas da eleição de 2010..Numa edição da Folha, cuja trave-mestra do seu manual de redação é o pluralismo, o leitor pode apreciar a opinião de um ícone da direita liberal, virar a página e ler o artigo de duas empenhadas feministas, dobrá-la novamente e demorar-se no texto de um filósofo conservador e virar finalmente e parar na coluna de um radical progressista. No final, na pior das hipóteses, o leitor pode manter exatamente a mesma opinião sobre determinado assunto; ou, na melhor, ter acrescentado ângulos novos às suas certezas..A Folha, porém, como a maioria dos grandes títulos, já se disse, sofre com as crises económica e de credibilidade. Crises que empurraram o mau leitor para consumir correntes de WhatsApp primitivas, fake news deslavadas ou, nova versão, o dado verdadeiro mas fora de tempo, como "Temer apoia Haddad", notícia da eleição municipal de 2012 vendida como atual, e "filho de deputado apanhado com droga entra no governo", uma informação de 2016 que se tenta passar como convite de Bolsonaro..Por outro lado, o bom leitor enveredou, por exemplo, pelo jornal onlineO Antagonista ou pela versão brasileira do projeto noticioso americano The Intercept. São dois casos de novo e relevante jornalismo. No entanto, um leve aplauso ao PT ou às esquerdas em O Antagonista só pode ter sido por distração e um suave louvor a Bolsonaro ou às direitas no The Intercept só pode ter sido por gralha. Por outras palavras, se gosta de qualidade fora dos media tradicionais leia O Antagonista mas leia também o The Intercept logo a seguir ou vice-versa. Isolados, mesmo com inegável qualidade, formam leitores monofónicos. Leitores pré-Cervantes..Estaremos tanto mais próximos do conhecimento quanto mais diversas forem as nossas leituras - no mundo real, de tantas tonalidades, em que o equilíbrio, a moderação e a independência não rendem cliques, não é verdade que Lula seja um herói de um romance de cavalaria e Bolsonaro um terrível dragão nem, obviamente, o contrário..Aliás, não por acaso, a personagem Dom Quixote perdeu o juízo, precisamente, por ler romances de cavalaria em excesso, com os seus heróis e os seus vilões primitivos. Uma literatura monofónica que lembra a que se consome hoje, 413 anos depois da publicação das histórias do engenhoso fidalgo de La Mancha.
Entre as razões que levaram especialistas na história da literatura, como o semiólogo Bakhtin ou o crítico Bloom, a considerar Dom Quixote de La Mancha a mais fundamental de todas as obras está o seu incomparável pioneirismo. Há até quem defenda que todos os romances posteriores reescrevem Dom Quixote ou o contêm implicitamente..É a primeira narrativa conhecida de segundo grau, porque as personagens são mais importantes do que a ação e influenciam-na, ao contrário do que era tradição à época; e de terceiro, porque ação e personagens transformam-se mutuamente pela primeira vez na história da literatura..Além de ser considerada, por alguns, a obra definitiva do humor, é também o marco zero do realismo, porque não só explica que Dom Alonso Quijano, o Dom Quixote, não é um herói, como defende que não há heróis, inaugurando o anti-herói na literatura. Tornou-se ainda, sublinha Bakhtin, precursora do niilismo por não acreditar em nada. No entanto, talvez a sua faceta mais extraordinária tenha sido, ainda de acordo com o semiótico russo, introduzir a polifonia na ficção: isto é, o confronto entre ideias e visões do mundo..Uma faceta ainda mais extraordinária se tivermos em conta que hoje, 413 anos depois da primeira edição madrilena, o ser humano é ainda tão monofónico: reduzido, portanto, a uma única voz, ou seja, à infame "bolha". O Brasil, em particular..A monofonia confunde-se, embora não se esgote nela, com a crise económica e de credibilidade da comunicação social tradicional. Jair Bolsonaro, já aqui se disse, escolheu o jornal Folha de S. Paulo como inimigo por ter trazido meia dúzia de reportagens antipáticas à sua candidatura durante a campanha eleitoral. A Folha, que a direita chama de "Foice de São Paulo" é a mesma que a esquerda apelidou de "Falha de S. Paulo" por causa de uma reportagem prejudicial a Dilma Rousseff, nas vésperas da eleição de 2010..Numa edição da Folha, cuja trave-mestra do seu manual de redação é o pluralismo, o leitor pode apreciar a opinião de um ícone da direita liberal, virar a página e ler o artigo de duas empenhadas feministas, dobrá-la novamente e demorar-se no texto de um filósofo conservador e virar finalmente e parar na coluna de um radical progressista. No final, na pior das hipóteses, o leitor pode manter exatamente a mesma opinião sobre determinado assunto; ou, na melhor, ter acrescentado ângulos novos às suas certezas..A Folha, porém, como a maioria dos grandes títulos, já se disse, sofre com as crises económica e de credibilidade. Crises que empurraram o mau leitor para consumir correntes de WhatsApp primitivas, fake news deslavadas ou, nova versão, o dado verdadeiro mas fora de tempo, como "Temer apoia Haddad", notícia da eleição municipal de 2012 vendida como atual, e "filho de deputado apanhado com droga entra no governo", uma informação de 2016 que se tenta passar como convite de Bolsonaro..Por outro lado, o bom leitor enveredou, por exemplo, pelo jornal onlineO Antagonista ou pela versão brasileira do projeto noticioso americano The Intercept. São dois casos de novo e relevante jornalismo. No entanto, um leve aplauso ao PT ou às esquerdas em O Antagonista só pode ter sido por distração e um suave louvor a Bolsonaro ou às direitas no The Intercept só pode ter sido por gralha. Por outras palavras, se gosta de qualidade fora dos media tradicionais leia O Antagonista mas leia também o The Intercept logo a seguir ou vice-versa. Isolados, mesmo com inegável qualidade, formam leitores monofónicos. Leitores pré-Cervantes..Estaremos tanto mais próximos do conhecimento quanto mais diversas forem as nossas leituras - no mundo real, de tantas tonalidades, em que o equilíbrio, a moderação e a independência não rendem cliques, não é verdade que Lula seja um herói de um romance de cavalaria e Bolsonaro um terrível dragão nem, obviamente, o contrário..Aliás, não por acaso, a personagem Dom Quixote perdeu o juízo, precisamente, por ler romances de cavalaria em excesso, com os seus heróis e os seus vilões primitivos. Uma literatura monofónica que lembra a que se consome hoje, 413 anos depois da publicação das histórias do engenhoso fidalgo de La Mancha.