A Mistura Lisboeta
Quando me mudei para Lisboa, há três anos, acabei indo morar no mesmo bairro onde tinha vivido em 2005. Santa Catarina estava mais cheia, mais chuvosa, mais barulhenta. Para voltar do trabalho sem esbarrar em ninguém, inventava atalhos para evitar as calçadas atravancadas que desembocavam no Elevador da Bica. Demorei duas semanas para conseguir pegar o lotadíssimo 28, na mesma tarde em que parou de chover e se rasgou uma nesga de céu azul. Só então me senti em casa.
O dia seguinte foi um sábado de sol. Da minha varanda no primeiro andar, fumando um cigarro, senti cheiro de maresia: era a maré subindo o Tejo. O começo de manhã silencioso deu lugar aos turistas que buscavam o Miradouro do Adamastor, e me dei conta de como algumas línguas falam alto; espanhol, crioulo, chinês, o português dos meus conterrâneos. Durante muito tempo a trilha sonora da minha casa foi a algaravia das conversas dos outros.
Com o passar dos meses fui me dando conta de que Lisboa vivia um momento muito diferente daquele que eu tinha conhecido. Onze invernos depois, a cidade não estava só mais luminosa, menos ranzinza, regurgitando gente e parecendo um paliteiro de gruas; uma infinidade de exposições, shows, festivais e mostras tinha imprimido um ritmo acelerado e ansioso, pelo menos para mim, que tentava ir a tudo como um polvo abraçando um gigante. O mais incrível é que os que dançavam, tocavam, cantavam e expunham não eram só portugueses: eram também estrangeiros, visitantes ou radicados na cidade, gente de Cabo Verde, de Angola e Moçambique. De São Tomé e de Bissau. E, principalmente, do Brasil.
Me vi assim no meio de um sonho febril e exigente, que demandava rigor na agenda e uma certa disposição, mas que recompensava qualquer esforço. Vi Mayra e Lura, Tito Paris e Tcheka, Germano Almeida e Armênio Vieira, que eu conhecia (como fã distante, pois sou tímido) dos tempos em que tinha morado em Cabo Verde. Do Brasil, ouvi Elza Soares, Chico Buarque, Gil e Caetano. E vi arte moderna (brasileira) no CCB, design (brasileiro) no Palácio Calheta, dança (brasileira) no Teatro S. Luiz e muito cinema (brasileiro) no São Jorge. Mas não era só o que tinha se consagrado como o suprassumo da nossa cultura, era o novo, o que despontava, as vanguardas cheias de talento sanguíneo e do arrojo dos que tem vinte anos e se sentem à vontade no mundo e nas Lapas. A carioca e a lisboeta.
Quando, no final de 2016, recebi do curador António Pinto Ribeiro a longa lista de ingredientes para a cornucópia de 365 dias que foi o "Lisboa Capital Ibero-americana de Cultura", tomei um susto. Tanta coisa boa do Brasil (e não só), mas tanta coisa que, na minha ingenuidade pessimista, seria mostrada para um público pequeno, ou para quase ninguém. Engano meu: ao longo do ano seguinte, multidões acompanharam os eventos espalhados pela cidade, de lés a lés. Pois não basta conseguir montar o circo, é preciso que não estejam na plateia só os amigos e os parentes. E na Lisboa que, dizem as estatísticas, tem cada vez menos habitantes, o que acontece de bom acontece para muitos. Será que as pessoas saem mais, será que mudaram os hábitos?
Eu tenho uma teoria: de quando em quando, algumas cidades explodem como fogos de artifício. Estava tudo lá, mas de repente reluz e faz barulho: o mundo todo presta atenção num rodamoinho de talento e criatividade que sai atraindo cada vez mais gente, gente que cria e que produz, gente que comenta e que assiste. Aconteceu no Rio de Janeiro da Bossa Nova e depois, nos anos sessenta, encarnou na Swinging London. Passa uma década e vem a Movida Madrileña. A mesma dinâmica: é onde tudo acontece, o único ponto do planeta onde se pode cantar, como Gilberto Gil, que "o melhor lugar do mundo é aqui e agora".
Pois agora é o tempo da Mistura Lisboeta, mas é diferente: o vórtex de Lisboa desabrochou cheio de estrangeiros. Minha respeitosa mesura: não é qualquer cidade que recebe tão bem o talento de fora, que se recusa a trancar a cultura estrangeira em gavetinhas étnicas e temáticas, que abre os braços para o que cruza a fronteira e se sente mais rica com o a arte do outro, que faz sua. A Londres cosmopolita não é assim. Nem Paris, nem Madrid. Aliás, nenhuma das três tem praia.
Talvez o segredo esteja aí : a maresia. Vá lá que seja rara, pois não me lembro de ter sentido o cheiro do sal e das algas depois daquele sábado distante de inverno, na varanda de casa. Mas numa cidade que nasceu do mar e para o mar, é mais fácil olhar com bons olhos para os que chegam de longe. E continuam chegando, para enriquecer Lisboa e se impregnar dela. Longa vida, portanto, para a Mistura Lisboeta, e que seja "infinita enquanto dure".
Infinita enquanto dure: a expressão é de Vinícius de Moraes, e arremata um de seus mais belos poemas, o Soneto de Fidelidade. Vinícius, que esteve em Lisboa há meio século e até gravou um disco com Amália, certamente adoraria estar hoje por estas bandas.
*Investigador do ISCTE-IUL, ex-Adido de Cultura da Embaixada do Brasil em Portugal