À minha mãe e a todas as mulheres

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Sento-me hoje para escrever esta crónica e, ao olhar o monitor em branco, inevitavelmente lembro-me da minha mãe, que nasceu em 1932 e, portanto, viveu a 2.ª Guerra Mundial.

A minha mãe nasceu numa aldeia da Beira Litoral, banhada a sul pelo rio Vouga. O meu avô era serrador e a minha avó cuidava dos seis filhos que tiveram; a minha mãe era a quinta. O mais velho e o mais novo tiveram a sorte de nascer rapazes e por isso foram à escola e cedo puderam ter algum dinheiro para si mesmos e construir as suas vidas. Não sou sequer capaz de imaginar a fome, o frio e as tantas humilhações que a minha mãe (e as suas irmãs e a sua mãe) sofreu durante a infância; algumas dessas humilhações apenas mas contou pouco tempo antes de morrer, quando havia perdido o férreo controlo sobre o que dizia e fazia que mantivera toda a sua vida. Cresci a ouvi-la dizer que "o Salazar não nos salvou da fome, mas salvou-nos da guerra", mas logo que comecei a ser gente e apesar da educação muito conservadora e católica que tive (ou talvez por isso mesmo), longe de admirar aquela figura sombria e endeusada, dei comigo a detestar aquela esperteza saloia e sem grandes princípios nem escrúpulos, que tinha mantido o país naquela miséria resignada por tanto tempo, com repressão, medo e falácias.

A minha mãe começou cedo a trabalhar. Logo aos sete anos, teve a sua primeira experiência "a servir" (entenda-se: como criada na casa de uma família remediada). A adolescência passou-a toda a servir, maioritariamente na pousada que ainda hoje existe na aldeia e mais tarde em casa de uma família abastada para os padrões da época, salazarista até aos ossos, cujos filhos, homens e mulheres, tinham vindo estudar para Lisboa e constituído as suas respetivas famílias, de classe média-alta, totalmente urbanas e também salazaristas. A minha mãe serviu até se casar por procuração, aos 24, e foi para a Venezuela, onde, com o meu pai, se matou a trabalhar para me dar as oportunidades que nunca teve nem sonhou e para ajudar o resto da família.

Penso hoje na minha mãe porque a sua história é o claro exemplo do porquê de precisarmos de celebrar o Dia Internacional da Mulher, amanhã. Nela revejo todas as mulheres que ainda hoje precisam de conquistar a pulso cada palmo do seu lugar neste mundo e todas as que abdicam até de si mesmas para ajudar filhos e familiares e garantir-lhes uma vida melhor do que a que tiveram. Através da minha mãe, a todas saúdo e homenageio pelo nosso dia, que se celebra a 8 de março.

Também penso na minha mãe, criança sem direito à infância, menina-adulta à força, por me ter feito acreditar que a guerra não voltaria nunca mais e por me permitir não sofrer o que ela sofreu. Através da minha mãe, saúdo e homenageio também as mulheres que por estes dias se veem forçadas a deixar para trás companheiros e amantes, pais, irmãos e amigos, para salvar os seus filhos e assim garantir que as suas vidas, ainda que interrompidas estupida e brutalmente pela loucura e brutalidade da guerra, valham a pena e se projetem para o futuro.

Esta semana, feriu-me como um lenho a afirmação de Zelenski de que os soldados russos não são guerreiros, mas crianças perdidas. Esta frase, tão letal e esmagadora para os russos como a mais poderosa das armas, torna mais vívidos e atuais os versos de Pessoa: Tão jovem! que jovem era! / (Agora que idade tem?) /Filho único, a mãe lhe dera /Um nome e o mantivera/ "O menino da sua mãe".
Viva a democracia! Viva a liberdade! Viva a esperança! Viva a vida!


Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa

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