"A minha alma é atlântica, porque sou angolano, vivi no Brasil e em Portugal"

O angolano da Velha Chica e de Sofrimento sobe hoje ao palco do Teatro da Trindade com dois violões e percussão, num regresso ao acústico. Waldemar Bastos, um dos cantores da geração da luta de libertação de Angola, regressa depois de ter dado a volta ao mundo musical
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Nasceu numa zona rural. Como foi parar à música?

Nasci em São Salvador do Congo, hoje M"Banza Congo, que continua a ser rural. O meu pai tocava órgão e violoncelo, tinha sido seminarista. Lembro-me de ouvir a minha mãe cantar em casa, sempre muito discreta. Quando tinha 6 anos, ela ouviu-me assobiar uma música da rádio e espantou-se, achou que o assobio não era de criança. Sentiu que havia algo e disse isso ao meu pai. Já tocava a concertina do meu pai, no Natal ofereceram-me um acordeão e aprendi sozinho a tocar. Depois eles foram colocados em Cabinda - os enfermeiros eram nómadas, dependiam das colocações - e foi aí que comecei a aprender música, com um professor.

Nessa escola aprendeu o quê?

Solfejo, para começar. Éramos quatro alunos - o meu irmão, eu e mais dois. Um dia a filha do professor percebeu que eu dizia o solfejo todo sem olhar para a pauta. Eu não estava a fazer aquilo por mal. Quando o professor lia no dia anterior o que ia ser a aula, eu decorava automaticamente. O meu irmão e os outros tinham de marrar e eu tinha aquilo matematizado e nem me apercebia. O professor fez-me perguntas e eu não sabia nada das notas na pauta. Fui para casa meio perturbado, parecia que tinha sido apanhado a aldrabar. Então o professor falou com o meu pai e disse que ia ensinar-me e os outros ficavam à espera, a fazer revisões.

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E depois do solfejo, aprendeu a tocar instrumentos?

Para nos ensinar a tocar, o professor mandava vir pautas de Portugal e demoravam muito tempo a chegar, iam de barco. Mas eu ouvia as músicas na rádio e tocava-as no violão. Então o professor passou a escrever as notas a partir do que eu tocava. Tinha um ouvido excecional, apanhava as músicas por dá cá aquela palha.

Isso determinou a sua vida?

Determinou a minha vida. É um dom que Deus me deu e os dons são dados para a gente repartir. Hoje estou muito mais maduro, sinto por que é que o dom me foi dado.

E por que foi?

Para alimentar a alma e mostrar a beleza, uma centelha da pátria celestial, acredito sinceramente. Nos meus espetáculos, muitas vezes as pessoas choram de beleza. Ainda agora foi assim quanto toquei com a Filarmónica do Luxemburgo, e também aqui no ISCTE com o Salif Keita. Nunca me meti na música pelo lado comercial, entrego-me, dando o melhor de mim, preocupando-me em apresentar as coisas com detalhe. Isso é anticomercial, não é fazer as coisas correr para aparecer, neste mundo em que tem de se aparecer a toda a hora.

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O concerto de hoje em Lisboa é especial?

São as viagens da minha vida desde a infância, e é um regresso ao início. Toquei em conjuntos de baile, grupos de rock, fiz os primeiros discos com banda, depois com orquestra - a Sinfónica de Londres e a Orquestra Gulbenkian. Dei a volta ao meu sonho musical, já o realizei. Agora regressei à fonte, ao violão, tenho mais maturidade e consigo de uma forma mais profunda e orgânica transmitir a minha alma. A minha alma é atlântica, porque sou angolano, vivi no Brasil e muitos anos em Portugal. Oiço música clássica, gosto de toda a música que seja boa. Como tudo na vida, a música tem duas faces. Não alinho muito no fast-food, nem na comida nem na música. Nós temos a pátria da língua portuguesa de que falava Fernando Pessoa. Eu assumo a minha mestiçagem, tenho a cultura portuguesa, paterna, e a africana, materna.

O seu pai era português?

Naquela altura éramos todos portugueses... O meu pai era mestiço, de pai português e mãe africana. A minha mãe tinha pai angolano filho de espanhol e a minha avó era africana. Absorvi todas essas viagens melódicas e harmónicas. Ao tocar, tudo isto sai, inclusivamente os arquétipos do meu lado espanhol, quem estiver atento vai notar. Mas não é uma coisa consciente. Assim como no sangue temos a hereditariedade, no espiritual também. E isso acontece quando um indivíduo a liberta, através do som.

Foi formado a aprender solfejo, com a estrutura da música europeia. Mas as músicas africanas têm estruturas diferentes, poderia dizer até em certos aspetos mais ricas, mais complexas.

É outra abordagem.

E isso aparece nas suas raízes?

O lado materno. Eu nasci numa terra mística. Percebi isso por-que achava estranho - quando estou fora e me cruzo com músicos africanos, se sabem que sou de M"Banza Congo fazem uma vénia. M"Banza Congo é considerada o berço da cultura de África. Da cultura e da música. Os maiores guitarristas de África tiveram a sua origem em M"Banza Congo. A minha mãe contava que havia muitas serenatas à noite e eu pensava que era a visão dela, porque era a terra dela, uma terra onde o papa João Paulo II esteve - quando visitou Angola foi lá beijar a terra. Está lá a primeira cruz de Cristo de quando foi a colonização. Eu nasci aí mas saí ainda bebé. Não sei explicar mas recebi um legado, um legado espiritual. Toco guitarra de M"Banza Congo, posso dizê-lo tranquilamente, como ninguém.

Essa guitarra é diferente?

É específica, é a guitarra africana mas com uma delicadeza diferente. Uma delicadeza, um refinamento completamente distinto. É isso que dá a mater. São fenómenos que não posso explicar. Nasci lá filho de enfermeiros que estavam a cumprir a sua vocação. Nesse tempo e naquele lugar, os enfermeiros eram doutores, conselheiros, pastores, eram tudo. Tenho a aparência de uma pessoa urbana, mas tenho um conhecimento da música rural, dessa música de mais profundidade, de uma forma natural.

Quantas cordas tem essa guitarra?

Tem as mesmas cordas das outras. Mas é como a guitarra portuguesa, o violão de M"Banza Congo é específico, no tocar, nas harmonias. Eu não estudei as posições do violão pelo livro. Componho, carrego os dedos em determinadas notas e estão feitas as posições, não lhes dou nome. Se me surge alguma ideia, pego no violão e crio a minha própria harmonia e melodia.

A maior parte do que canta é composto por si?

Às vezes gosto de um poema e musico-o. Tenho isso logo no meu primeiro disco, poemas do Ernesto Lara Filho. Se gosto muito de uma música tradicional, faço o meu arranjo. Quando gosto de músicas de outros compositores e as sinto, vou buscar e recrio.

Por exemplo?

As músicas de Liceu Vieira Dias. Era uma pessoa que me estimava e que éramos ainda família, disse-me ele. Ele incentivou-me a ir embora de Luanda na altura do marxismo. Eu já tinha isso em ideia e quando ele disse aquilo... Vim a Portugal para o FITEI e desertei, fui-me embora para a Alemanha Federal. Esse é o estigma que eu tenho.

Não o deixam voltar a Angola?

Volto mas há um bloqueio, dificultam-me, não me deixam trabalhar, há muitos anos. Isto é mais do que sabido, é um ódio de estimação. E a orientação do sistema não permite. Não se passa só comigo. O importante agora é ter uma música sensual, para dançar, e romântica e criar um núcleo de artistas que fazem parte da corte. Lá e alguns deles postos cá. Não cito nomes. Nunca tive ambições políticas, mas paradoxalmente isto tem que ver com ideologias que ainda não se esbateram, muito quadradas.

Acha que isso pode mudar?

Sem dúvida. Até porque nós fomos a geração dos que ajudámos à libertação, e depois fomos coartados. África é portentosa, Angola é portentosa, basta olhar para a selva, para a natureza, os rios caudalosos, as montanhas, a selva do Maiombe, a vegetação, os animais. Angola é aquilo que se chama África em força - elefantes, leões, tigres. Não é possível derrubar um embondeiro, ele fica com as suas raízes. Felizmente, nós, cantores da alma, não deixámos morrer isso, e ainda mais agora com as novas tecnologias.

E as novas gerações?

Já se sente lá dentro a força das novas gerações, e até cantam a minha música. Quando uma música tem alma, contém os arquétipos, ela renova--se. A tal ponto que toda esta tentativa de abafar, de bloquear, tem o efeito contrário. O consumismo atingiu o exagero, as pessoas têm apetência por tudo o que for orgânico. Nós somos espírito e matéria, não vale a pena tentar ficar só matéria. A necessidade espiritual está muito presente.

Voltou a M"Banza Congo?

Incrivelmente, conheço Angola quase toda menos M"Banza Congo. Nunca me convidaram e eu próprio estive várias vezes para ir mas há algo... estive perto, no Soyo, que é a capital da província, mas lá mesmo onde nasci desde criança que não vou. É um mistério. Há quem diga que é muito importante. Mas irei lá, num outro momento e será muito bom. Angola é muito diversa e aquele povo tem um carinho muito grande pelos seus artistas. Enquanto isso, o vinho vai maturando no casco.

Continua a compor? Sai-lhe naturalmente?

Sim, não é nada programado.

Como é a sua vida, onde vive?

Um dos meus filhos está a estudar em Londres, o outro em Los Angeles e a minha mulher quis acompanhar o que está mais longe. Tanto estou lá como na Europa. Não tenho sponsors, tento gerir a minha vida em função dos contratos. Vivo entre LA e Lisboa, dois L. Ainda poderá vir a ser três.

O terceiro L é Luanda?

Sim.

Gostaria?

Tinha toda a lógica. Os artistas africanos vivem nas capitais dos países que colonizaram. Os francófonos têm casa na sua terra e em Paris, os anglófonos têm casa na sua terra e em Londres, e seria lógico também... Mas não com estes filmes que acabei de explicar. Em vez de se falar só em política, pode falar-se em arte. Quem ouvir a minha música pode perceber a riqueza desta pátria, e Portugal poderá, ou deverá, ser a plataforma para o mundo das diferentes correntes da música de língua portuguesa. Há bocado disseste que a África Ocidental tem outro tipo de música, para lá da dimensão espiritual, os mandingas, aquelas coisas todas. É uma outra escala musical, como acontece também com a escala da música árabe ou a da Turquia.

Há traços em comum na música que se canta em português?

A música atlântica da língua portuguesa tem uma dimensão própria. Atuei em Los Angeles no ano passado, no American Japanese Theatre, e a sala estava cheia de americanos e japoneses. Foi um espetáculo lindíssimo, foi aí que comecei a fazer acústico. No final, entrou-me no camarim um casal e entregou-me um cartão. Não sabia quem eram. Disseram-me que ele era o presidente da CalArts [California Institute of the Arts], a grande universidade de artes. Ele depois convidou-me a visitar a universidade e propôs-me que apresentasse um projeto. Disse que ele e a mulher tinham ficado admirados como é que de repente eu estava em África, de repente apareciam nuances de música ocidental, de música brasileira, de fado. Foram assistir a um artista africano e viram uma coisa diferente. O que é isso? Ainda não apresentei um projeto porque isso obrigava-me a ficar lá, e tenho de ganhar a vida. Dar aulas era cortar o meu lado artístico. Expliquei-lhe que o fenómeno Cesária Évora tem muito que ver com isso.

Em que sentido?

É uma música atlântica, tem uma sonoridade... nós somos colonizados mas ocidentais, foram 500 anos. Eu não faço nenhum esforço para cantar em português, eu sonho em português. Esta África está ainda, em termos musicais, por ser descoberta. O primeiro pontapé de saída da música portuguesa é a Amália Rodrigues, sem sombra de dúvida, num tempo em que não havia marketing. Depois temos a Maria João Pires e hoje a nova geração de fadistas. E aparece a Cesária da parte africana, e eu estou nessa senda. Ao recuar para a música acústica, consigo passar esta beleza, essa miscigenação, de uma forma natural. É isso que sou.

Foi isso que impressionou o presidente da CalArts?

Ele viu que havia uma coisa diferente. A música africana é diversa ao nível do continente e mesmo ao nível dos países. Há uma diversidade.

Quando fala de Deus, é específico de uma religião?

Sou católico apostólico romano. É o Deus católico.

Mas fala de um lado espiritual que tem que ver com as raízes africanas.

Quando falo de espiritualidade estou a falar da religião católica, que conheço e aprofundei. Fala-se muito pouco, mas a espiritualidade é uma realidade. O Papa Francisco aborda isso. Ficar só a matéria a tomar conta disto é que provoca desarranjos. Tenho proble- mas como toda a gente, mas tento desenvolver a minha espiritualidade e não estar hipnotizado pelo consumo. Isso traz alguma tranquilidade, mas uma tranquilidade em Deus não é buscada artificialmente com calmantes.

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