A metade do céu 

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Por entre a espessa escuridão de uma violência que acrescentou violência, mais bombas, mortes, sofrimento, uma desesperança crescente como matéria viscosa alastrando pelos lugares - por entre essa espessa escuridão -, a nomeação do Prémio Nobel da Economia atribuído a Claudia Goldin foi uma pequena luz quase perdida no meio das notícias do dia. Pela primeira vez, uma mulher ganhou sozinha esta distinção, que lhe foi atribuída pela investigação sobre o papel das mulheres no mercado de trabalho. Importa sublinhar estes dois factos: até à data apenas três mulheres ganharam o Prémio Nobel da Economia, mas as duas primeiras em parceria com outros vencedores-homens e, além de ter ganho desta forma destacada, Claudia Goldin centra a sua investigação nas mulheres. Não tenhamos ilusões: os temas de pesquisa ao mais alto nível são condicionados por tendências dominantes, em que raramente têm lugar os interesses das mulheres. Claudia Goldin há várias décadas que se dedica a compreender as desigualdades entre homens e mulheres (Understanding the Gender Gap, 1990), as carreiras longas (Women Working Longer: Increased Employment at Older Ages, 2018), ou a articulação entre carreiras e família (Career & Family: Women"s Century-Long Journey Toward Equity, 2021). Nenhum dos seus muitos títulos está traduzido em português.

Na introdução de Understanding the Gender Gap, que marca a tendência dominante da sua pesquisa, Claudia Goldin escreve: "Pode ser uma surpresa para muitos economistas, geralmente os mais conservadores no conjunto das ciências sociais, que haja interesse pela participação das mulheres na economia e as diferenças de género nas remunerações e tipo de trabalho. O seu interesse tem sido o número de horas, dias e anos de trabalho, focando-se nas mulheres cujo tempo de vida laboral contém mais variações do que os homens."

O que tem despertado o interesse dos analistas é a forma como as mulheres têm conciliado vida familiar e emprego. Claudia Goldin foi mais longe revelando, pela primeira vez, como a Revolução Industrial afastou as mulheres do mercado de trabalho, mas também como a possibilidade de controlar a sua fertilidade permitiu o regresso das mulheres, mostrando ainda como as trajetórias das mulheres são muito mais irregulares do que as dos homens em função das necessidades de acompanhamento familiar.

Na mesma altura em que Claudia Goldin publicava a sua obra mais emblemática, Maria de Lourdes Pintasilgo, a convite do secretário-geral da OCDE, foi redatora do Relatório Conduzir a Mudança Estrutural: O Papel das Mulheres (1990-1991), em que se assinala a falta de participação das mulheres nos lugares de decisão e se reivindica o direito inalienável da mulher em ser livre na escolha da reprodução, ao mesmo tempo que se destaca a economia do cuidado, ignorada e desvalorizada, mas essencial para o desenvolvimento e crescimento das sociedades.

Passadas mais de quatro décadas, a nossa visão global não é animadora e a luta das mulheres pela igualdade está longe de ser alcançada, com retrocessos em muitas regiões em que se deixou de considerar um tema prioritário ou sequer admitido.

Em 2022, a OEI reforçou o seu Programa de Direitos Humanos, Democracia e Igualdade, ciente de que as soluções para a pobreza, a desigualdade e a exclusão social exigem uma perspetiva de género. Desde o acesso desigual à Educação, às práticas escolares e currículos que reforçam os estereótipos, às diferenças salariais e dificuldades de inserção no mercado de trabalho de mulheres em idade fértil - há um longo caminho em que temos de começar pelos mais novos. Importa que todos entendam que não estamos apenas a lutar pelos direitos das mulheres, que são Direitos Humanos, mas por uma cidadania conjunta que beneficia e envolve todos, porque uma plena e justa participação tem impactos reais nas sociedades.

Há muitos anos, numa reunião de trabalho em Macau, o reitor de uma universidade japonesa dirigia-se a mim sempre através da sua assistente, uma mulher. Confessou que não considerava habitual ter de negociar com mulheres e tinha dificuldade em entender como naquele pequeno território tantas mulheres estavam em lugares de direção. Felizmente estávamos na China, disse-lhe, onde as mulheres reivindicavam por direito próprio metade do céu. Ainda com muito caminho para lá chegar, mas sem nunca alienar direitos e deveres.

Diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos

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