A Mesa da Assembleia da República é uma questão constitucional

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A composição da Mesa da Assembleia da República é uma questão constitucional: a Constituição regula expressamente esta matéria, no artigo 175.º, alínea b), e pretende que os principais partidos parlamentares estejam representados naquele órgão, não deixando em aberto essa questão para o regimento nem para a lei.

A representação dos quatro maiores grupos parlamentares na Mesa do Parlamento é uma norma datada, que reflete a composição quadripartidária do parlamento que persistiu até ao final dos anos 1990. Na Alemanha, por exemplo, a questão não é regulada pela Constituição, o que confere a esta problemática uma natureza distinta da que possui entre nós - esse direito é apenas atribuído pelo regimento, e é conferido a todos os grupos parlamentares e não apenas aos maiores. Provavelmente, em sede de revisão constitucional, deve discutir-se a extensão do direito de representação a todos os grupos parlamentares e não apenas aos quatro maiores.

Ao garantir a presença dos principais partidos parlamentares na vice-presidência da Mesa da Assembleia da República, a Constituição procurou garantir um equilíbrio entre o princípio da maioria e o respeito dos direitos das minorias. As minorias políticas gozam, aliás, do direito constitucional de oposição, mais um elemento das democracias constitucionais que garante que o poder não é exercido de modo absoluto.

A proteção das minorias políticas ganha especial acuidade em tempos de executivos maioritários monopartidários, em que o controlo parlamentar por parte dos partidos da oposição se encontra enfraquecido. O princípio da representação dos maiores grupos parlamentares na Mesa da Assembleia da República não é um fim em si mesmo: visa a inclusão das minorias no processo de decisão parlamentar, tornando-o o mais plural possível, potenciando a sua aceitação por parte dessas minorias. Excluir um partido ou um grupo parlamentar da deliberação e do processo decisório conduz a uma distorção da representação da cidadania.

Da Constituição resulta, portanto, a garantia de que os quatro maiores grupos parlamentares serão representados na vice-presidência da Mesa da Assembleia da República. Resulta também que essa representação se processa por eleição dos membros, por maioria absoluta. Mas resulta, também, ainda, que os deputados exercem livremente o seu mandato, e que os mesmos são chamados a participar desta decisão, elegendo (ou não) os membros da mesa, cujo sufrágio carece de maioria absoluta.

Ora, parece existir aqui uma tensão entre o direito dos quatro grupos parlamentares a estarem representados na Vice-Presidência da Mesa, por um lado, e o direito dos deputados de exercerem livremente o seu mandato, sendo livres de eleger ou não o candidato indicado por esses grupos parlamentares.

A vice-presidência da Mesa da Assembleia da República é responsável não apenas por aspetos de organização interna e de gestão do parlamento, mas também pela sua representação externa. Trata-se de um órgão que representa o parlamento e que defende a sua dignidade. Tendo em atenção esta função representativa, compreende-se a solução constitucional (e regimental) que coaduna os direitos dos grupos parlamentares com o escrutínio da personalidade concreta que os mesmos apresentam para integrar a vice-presidência da Mesa. Caso os deputados entendam que os candidatos indicados pelos grupos parlamentares não reúnem as condições pessoais nem são idóneos para desempenhar tais funções, existe a liberdade, constitucionalmente protegida, de rejeitar tais propostas.

Questão distinta é um veto absoluto a todo e qualquer candidato oriundo de um grupo parlamentar, independentemente desse juízo pessoal e concreto. Uma discriminação total e absoluta de um grupo parlamentar carece de fundamento constitucional. Impedir determinado grupo parlamentar de aceder à vice-presidência da Mesa implica uma restrição injustificada dos direitos de participação desse grupo parlamentar e dos seus membros, os quais, recorde-se, são constitucionalmente protegidos. É difícil, em todo o caso, garantir a possibilidade de controlo de uma situação deste tipo por parte do Tribunal Constitucional, apesar de lhe assistir competência para conhecer recursos de eleições realizadas na Assembleia da República. Uma situação desse género seria o resultado do comportamento eleitoral cumulativo de várias eleições secretas, dificilmente apreensível num processo com aquele recorte.

De qualquer modo, vale a pena relembrar aqui o que defendem os professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no seu livro Como Morrem as Democracias: a propósito da tolerância institucional, aconselham os vencedores de processos democráticos a evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam obviamente o seu espírito. Como relembram continuamente esses autores, a polarização extrema pode matar as democracias.

Constitucionalista e Investigadora da Universidade Friedrich-Alexander de Erlangen-Nürnberg

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