A menina mal-comportada e o realizador inventivo
Uma boneca derretida ao Sol, uma brincadeira inocente com peixes fora do aquário ou um chá de água do cão com pedaços de giz a fazer as vezes dos quadradinhos de açúcar... Eis algumas das diabruras de Sofia, personagem oriunda da literatura infantojuvenil da Condessa de Ségur (1799-1874), que Christophe Honoré recupera no grande ecrã com frescura e modernidade, dentro de uma arejada composição de época. Nas mãos do realizador francês, o filme Os Desastres de Sofia (estreia hoje nas nossas salas) é sinónimo de atrevimento mas também de graciosidade, ajustando-se tanto ao interesse de um público adulto, sobretudo pela carga de humor negro, como à simpatia dos mais jovens, pelo uso de figuras animadas no corpo da imagem real, além de personagens que falam diretamente para a câmara, numa interpelação frequente.
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Vestida de branco, como um anjo, Sofia representa a fatalidade com pernas, levando a mãe (uma doce Golshifteh Farahani) ao absoluto desespero, e as amigas e o primo ao espanto renovado com a sua travessa imaginação. Ela quer experimentar tudo o que se distancie da regra, e provocar um constante clima de desordem no castelo onde vive apenas com a mãe e a criadagem, sem qualquer vigilância paterna... Da mesma forma, Honoré não responde perante nenhuma autoridade. Esta escolha de um clássico completamente diferente do que esteve por detrás da sua anterior adaptação - Metamorfoses, de Ovídio - pode ser interpretada como um gesto de incessante curiosidade. Um testar das fronteiras do seu cinema, a cada novo filme, desviando-se da rigidez autoral. Sem que o traço de autor se tenha esbatido: a educação sentimental é a mesma.
Resultado desse experimentalismo que vai pontuando a obra de Honoré, Os Desastres de Sofia assinala ainda um regresso às delícias do musical, com poucas sequências nesse registo, mas verdadeiramente encantadoras. Aqui, o cineasta de As Canções de Amor desestabiliza o retrato de época (século XIX) com músicas criadas pelo seu assíduo colaborador, Alex Beaupain, intercalando-as com uma partitura clássica que cede ao fôlego moderno e espontâneo de cada cena.
Começando pela narrativa do livro Os Desastres de Sofia, o filme baseia-se ainda no segundo romance da trilogia da Condessa de Ségur, As Meninas Exemplares, adquirindo uma tonalidade dramática e visual mais obscura nessa parte seguinte, quando Sofia já não tem os braços aconchegantes da mãe à sua disposição. De resto, a literatura infantojuvenil não é território estranho a Christophe Honoré, autor de vários livros para os mais novos, com genuína sensibilidade para as temáticas relacionadas com o crescimento. Este é, por isso, um cosmos onde se sente muito à vontade e é capaz de explorar abertamente entre o olhar natural e a fantasia.