A menina de Harry Potter no labirinto das redes sociais

O Círculo expõe as ambiguidades de um mundo virtual em que a transparência esconde uma sede de poder.
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Em 2013, quando foi lançado nos EUA o livro de Dave Eggers, O Círculo (ed. Relógio d"Água), Margaret Atwood resumiu a sua importância escrevendo em The New York Review of Books que se tratava de um romance habitado por "ideias sobre a construção e desconstrução social da privacidade, sobre o crescente controlo dessa privacidade por parte das grandes empresas e os seus efeitos na natureza da democracia ocidental". Realizado por James Ponsoldt, o filme homónimo baseado no livro (estreia hoje) apresenta-se como um eco muito direto de tais temáticas, cruzando a parábola sobre os poderes da tecnologia com um clima típico de thriller psicológico.

A protagonista desta aventura vivida num sedutor e assustador "admirável mundo novo", de nome Mae Holland, é uma jovem que consegue concretizar o sonho de entrar para uma gigantesca empresa de comunicações cuja designação, O Círculo, está longe de ser simbolicamente ligeira ou indiferente. Desde logo, porque é suposto os seus empregados viverem numa lógica de proximidade e constante partilha em que tudo é, realmente, circular, quer dizer, tudo tende para o interior da própria empresa, reforçando a sua consistência. Depois, porque a sua estratégia consiste em integrar os dados dos seus clientes (e-mails, perfis de redes sociais, gostos de consumo, transações bancárias, tendências de voto, etc.) num sistema, também ele circular, em que o indivíduo, mesmo sem o saber, pode acabar por delegar a gestão de todos os níveis da sua existência nos circuitos informativos de O Círculo.

A pouco e pouco, a voluntariosa Mae irá perceber que não é possível ter uma visão cândida da empresa que, afinal, rapidamente a adota como fundamental personalidade criativa. A constante celebração da integração tecnológica como apoteose de uma transparência redentora esconde uma vontade de poder cujos contornos democráticos são francamente duvidosos, para não dizer maquiavélicos.

Escusado será dizer que, mesmo com uma estrutura dramática limitada por algumas pontas soltas, O Círculo é um filme deste (e para este) tempo, em que a abrangência labiríntica das chamadas redes sociais suscita, no mínimo, uma dúvida metódica. A saber: até que ponto a humanidade das nossas relações está ser substituída pela gélida eficácia dos circuitos e quantificações do mundo virtual?

E não deixa de ser perturbante que o papel de Mae tenha sido entregue a Emma Watson, atriz que foi um dos símbolos do imaginário juvenil de Harry Potter (tinha 11 anos quando, em 2001, foi lançado o primeiro título da série). Na verdade, ela inscreveu-se na história do cinema do século XXI como ícone de uma pureza afetiva que, de algum modo, ainda ecoa no seu recente trabalho em A Bela e o Monstro. A seu lado, no papel de dirigente de O Círculo, Tom Hanks é o protótipo de uma ambiguidade radical: a que oscila entre a compaixão humana e mais cruel manipulação emocional.

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