A menina Cristina Branco ainda tem muito para dizer. Canta-o amanhã no CCB
""Sou mãe de duas crianças, tenho esta idade, alguns cabelos brancos, um cão, um gato..." Fui descrevendo a minha pessoa de uma maneira muito sintética, também para dizer que, apesar de ser cantora - há uma tendência para catalogar o artista, normalmente pomos os artistas num pedestal -, sou igual a todas as pessoas. Concluo o texto dizendo: "So what? Não há problema"." No princípio de Menina esteve um autorretrato de Cristina Branco, que amanhã leva o disco ao palco do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Curiosamente, esse retrato escusa-se a dizer que ela é cantora. "Nem sei muito bem porquê. Ser cantora é uma coisa que está em mim desde sempre, uma coisa inata; que evoluiu, obviamente, sofreu mutações no processo criativo e físico", diz.
O autorretrato seguiu depois para os compositores e letristas que criaram aquele grupo de meninas, mulheres, que formam Menina. Entre eles, Jorge Cruz, os ex-Ornato Violeta Peixe e Nuno Prata, Luís Severo, Kalaf, Luís Gomes (Cachupa Psicadélica), ou Filho da Mãe (Rui Carvalho) e André Henriques (Linda Martini), que assinam E às vezes dou por mim, o tema que abre o álbum. Foi esse o primeiro que Cristina recebeu, entre os trabalhos daquela nova geração a cujas mãos se confiaria. Quando o ouviu, pensou: "Está tudo certo."
Agora já passaram cerca de cinco meses desde o lançamento do álbum. Sentamo-nos numa sala do CCB e Cristina Branco, no seu tom calmo, nos seus 44 anos, conta como percebeu que precisaria daqueles autores tão mais jovens - "alguns têm metade da minha idade" - para o álbum que queria fazer. "Todo aquele sangue novo e aquela voracidade de vida e de modernidade que eu não estava a conseguir a determinada altura da minha carreira foram trazidos por eles. Eles estão tão ávidos de mundo e do que é novo... Eu ainda quero dizer coisas, e foi precisa humildade também para perceber que é dali que vem o novo."
É dali que vem o novo, mas neste álbum ele também surge de Quando julgas que me amas, com letra de António Lobo Antunes e música de Mário Laginha, tema que já aparecera no disco Não Há Só Tangos em Paris (2011) ou de Ai, Esta Pena de Mim, um fado com letra de Amália e que esta cantava.
São muito diferentes entre elas aquelas meninas do disco. Perguntamos à cantora se é verdade que elas têm como traço comum o facto de serem tão resolvidas, com uma noção tão clara de si próprias. "Claro. À exceção..." Cristina hesita. "É uma boa discussão. Há um texto da Amália, o único fado do disco [Ai, Esta Pena de Mim], e de facto ela não é resolvida. Mas é uma coisa tão tipicamente nossa. Porque o ser muito resolvida às vezes é uma coisa que passa para fora, mas no íntimo há muitas dúvidas no ser feminino, somos muito duais..."
A menina Amália
O fado apareceu na vida de Cristina numa discussão com o avô, tinha ela 18 anos. Agora, diz, "é sempre ao fado que volto, independentemente do caminho que percorra". Na referida discussão, recorda, o avô "dizia que o fado é a matriz da música portuguesa, e achava importante que eu ouvisse, que não desprezasse. Imagine-me com 18 anos... Ouvia Zeca Afonso, Fausto, tudo menos fado". Mas o avô ofereceu-lhe um disco da Amália, em que ela em vez de fado cantava, entre outros géneros, rancheras. "Permitiu-me perceber que eu conseguia fazer o paralelo entre o fado e aquilo que eu gostava de cantar. Descubro o fado, a capacidade interpretativa daquela mulher, a capacidade de mostrar as palavras. Na verdade, o primeiro grande impacto para mim foi esse."
Da juventude até agora, muito mudou. No palco, Cristina diz que tudo é "cada vez mais inteiro". "Cada vez me foco mais na minha interpretação, na minha arte, na essência do que estou a fazer, e cada vez me preocupo menos com a parte estética, que era uma coisa que quando tinha 25 anos fazia alguma diferença." Numa sociedade que "cada vez mais procura o que é novo, o que é fresco, há uma necessidade de dizer às pessoas que se pode continuar ali à frente dos holofotes, e ter coisas para dizer, apesar de já não se ter 20 anos. Isso não é fácil, não é fácil lidar com isso". Mas, afinal, este é o país onde se usa "menina" para alguém que "pode ser mesmo uma menina ou para uma pessoa de uma idade considerável. É uma coisa tipicamente portuguesa", repara.
Foi deste país em que "nos chamam "menina" até muito tarde" que ela saiu em "2011 ou 2012" e rumou à Holanda. "Houve uma altura muito difícil no nosso país. Acho que em termos criativos foi dramático para nós todos. Dizerem-nos que não só não éramos capazes como considerarem que a cultura era uma coisa que estava sobrevalorizada, quando para mim - e foi aquilo que me ensinaram - a cultura é a base de nós todos. E quando se sente que isso se está a perder ou que não é valorizado, então há qualquer coisa que está errada."
Agora anda entre Amesterdão e Lisboa. Diz que o país está melhor. "Acho que há bons indícios. Pelo menos agora sinto que posso estar em paz se os meus filhos aqui estiverem." Sempre em trânsito, diz que nunca se sentiu emigrante. Ou "se calhar fui sempre emigrante, desde que canto".
Amanhã, Cristina, a menina de 44 anos, cantará o seu novo álbum e outras canções dos últimos 20 anos que a trouxeram até aqui.