A memória em nome da paz…
No final da última semana, teve lugar em Santiago de Compostela, uma reflexão sobre a importância do património cultural na sociedade contemporânea, não como questão do passado, mas como fator dinâmico de desenvolvimento humano. A iniciativa coube à Hispania Nostra, representante da Europa Nostra em Espanha e permitiu não só repensar a Convenção de Faro, do Conselho da Europa, sobre o valor do Património Cultural de 2005, mas também tirar consequências para o momento atual, quando há tantas ameaças e quando a conjuntura marcada por duas guerras exige a adoção de medidas concretas visando a paz e o desenvolvimento. Por vezes afirma-se que o património cultural não se relaciona diretamente com a vida das pessoas, tal não corresponde, contudo, à verdade, uma vez que o conceito amplo do património cultural abrange toda a vida humana. De que falamos? De património material, envolvendo monumentos, objetos e documentos; de património imaterial, abrangendo tradições, costumes, línguas e quotidianos; de património natural, considerando a salvaguarda do meio ambiente e da sobrevivência do planeta terra; de património paisagístico e de defesa da qualidade de vida em cidades que devem ser concebidas para as pessoas; de património digital e tecnológico, bem como da própria criação contemporânea
Abrange-se, assim, necessariamente, a cidadania plena e o direito à vida, bem como o modo como as sociedades existem e se organizam. Eis por que os direitos e os deveres humanos constituem pano de fundo para todas estas preocupações. Foram lembrados, por isso, os casos das centenas de bens do património cultural ameaçadas pelas guerras na Ucrânia e no Médio Oriente (e não só), sem esquecer casos dramáticos como os de Palmira, em que a destruição dos monumentos foi acompanhada pelo assassinato de quem dirigia a investigação e preservação. Toda a destruição de bens do património cultural envolve a Humanidade toda. Daí a importância da noção de património comum e da exigência de preservar a memória, como garantia de coesão e de confiança, de reflexão e de respeito pelo tempo, em lugar da tentação imediatista ou das perigosas soluções mágicas. Eis por que a cultura da paz e da não-violência tem de estar presente na vida democrática, baseada em instituições legítimas e numa mediação eficiente e equitativa. Uma sociedade sem memória suicida-se. A sustentabilidade cultural e o Estado de Direito obrigam, como afirmou Federico Mayor no Manifesto 2000 da UNESCO, a respeitar a vida e a dignidade de cada pessoa; a rejeitar a violência, designadamente para com os mais vulneráveis; a ser generoso, na partilha de recursos e de tempo e na promoção da inclusão; a ouvir para compreender, em nome da liberdade de expressão e da defesa da diversidade cultural; a preservar o planeta, através do consumo responsável e do equilíbrio na utilização dos recursos naturais do planeta, bem como na redescoberta da solidariedade, com participação de todos, partilha de responsabilidades, equidade e sobriedade. Como disse Joseph Rovan, ao sair em 1945 do campo de concentração nazi onde estava, haveria que continuar a lembrar os crimes para que não voltassem a acontecer e haveria ainda de esquecer os atos, para que o ressentimento não abrisse uma escalada de violência.
Italo Calvino, cujo centenário celebramos este ano, deixou, na sua última obra, um verdadeiro testamento moral, que importa ser lembrado. Trata-se das suas "Seis Propostas para o Novo Milénio". Quando as lemos, apercebemo-nos de que constituem desígnios exigentes, que devem tornar-se linhas de ação no sentido de construirmos uma sociedade mais humana, em que a confiança e a memória sejam sinais de esperança. Deste modo, a Leveza, a Rapidez, a Exatidão, a Visibilidade, a Multiplicidade e a Consistência são modos de aprendermos a conhecer, a fazer, a viver com os outros e, afinal, a Ser.
Administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian