A melhor reportagem em canção

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A idade tem disto, o melhor que temos vai-se-nos varrendo. Não é que me esquecera daquele encontro em 1978? Em união de facto tenho visitado o Brasil desde garoto, mas de papel passado - com comprovativo do talão de embarque de avião - só fui ao Brasil, pela primeira vez, nos anos 1980. Por isso me convenci de que nunca estive, naquela tarde, no bar da Carmela, em São Paulo. Mas estive, agora recordo tudo.

Um táxi levou-me ao endereço que eu trazia num bolso, Rua Almirante Marques de Leão, 740, bar manhoso, estávamos no Bairro Bexiga. Nome de um português antigo com marcas de varíola na cara, ainda São Paulo era bandeirante, e depois bairro de imigrantes italianos. Há uma canção, Um Samba no Bexiga, do mais famoso habitante do bairro, Adoniran Barbosa, nascido João Rubinato, filho de italianos. Justamente, ele estava sentado à mesa e tocava o seu isqueiro. Um samba ia por ali fora e o isqueiro, seguro pela mão esquerda, recebia a batida do polegar e o dedilhar da mão direita do autor de Trem das Onze. Cantava uma mulher sentada ao lado do velho compositor (nessa altura com 68 anos). Cara lavada e voz de Elis Regina. E era ela, com um singular colar de pérolas no bar da Carmela.

Balcão de azulejos e tampo de mármore barato, prateleiras de metal com garrafas poeirentas, uma delas de Cinzano. Sei que era 1978, mas a época não a localizo, nem me deixo enganar por um cartaz de letras trabalhadas, na parede: «Boas Festas» - aquele era o tipo de lugar onde os cartazes se deixam ficar até descolarem. Elis, de olhos fechados e sentada, cantava Iracema, outro samba-canção de Adoniran. A letra era mais dramática do que um fado (Iracema morreu atropelada ao atravessar a rua e deixou noivo), mas Adoniran arrastava fama de pôr ironia em tudo. O seu biógrafo Celso de Campos Jr. diz que ele ameaçara uma beleza que não lhe ligava: «Iracema, vou-te matar!» No dia seguinte, mostrou-lhe a letra: «Tá aqui. Te matei.» Elis acabou e Adoniran, com o seu bigodinho, fino e finório, e voz rouca e bendita (foi por não a ter que ele se dedicou às letras) atacou o tal Um Samba no Bexiga, acompanhado de risos por Elis Regina.

Adoniran pôs o chapéu, endireitou o lacinho e quis mostrar-nos o bairro. Lá fomos os três, com ela ao meio, agarrada ao braço dele. Ainda havia algumas janelas de ripinhas e uns poucos portões de quintal de ferro forjado e muretes caiados de azul, sob os prédios altos e sem graça. Os sapatos de pala branca de Adoniran conduziam-nos, quando Elis se pôs a fazer de cicerone, com palavras dele. Podem julgar, pelo compasso, que ela cantava, mas eu ouvia a letra de uma reportagem, com gente. Adoniran tinha-a escrito em 1951: Saudosa Maloca, história de três pobres diabos expulsos do abandonado Hotel Albion que haviam feito lá a sua maloca (casa ocupada).

Disse Elis Regina, as palavras de Adoniran Barbosa: «Se o senhô não tá lembrado, dá licença de contá. Ali onde agora está, esse edifício arto, era uma casa veia, um palacete assobradado. Foi ali, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca construímo nossa maloca. Mas um dia, nem quero lembrar, veio uns homes co'as ferramenta, o dono mandou derrubar... Peguemo tuda nossa coisas e fumus pro meio da rua, espiá a demolição. Que tristeza que nóis sentia, cada tauba que caía, doía no coração. Mato Grosso quis gritar, mas em cima eu falei: os home está co'a razão, nóis arranja outro lugar. Só se conformemo, quando o Joca falou: Deus dá o frio conforme o cobertor. E hoje nóis pega paia, nas grama do jardim, e prá esquecê, nóis cantemo assim: Saudosa maloca, maloca querida, onde nós passemo dias feliz de nossa vida."

Eu trouxe-vos aqui por causa deste delicioso português. Se querem confirmar que existe esta língua tão bela, ide ao YouTube, teclem «Adoniran, Elis Regina, 1978». Tudo perfeito, exceto um porém: por erro técnico, não apareço no vídeo.

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