A medida contra o aborto que faz aumentar abortos
Aceder às páginas das organizações não governamentais (ONG) que trabalham na área da saúde reprodutiva das mulheres nos países em desenvolvimento é entrar nas trincheiras da guerra contra Trump. Por exemplo a Mary Stopes International, que se anuncia como estando presente em 37 países para ajudar as mulheres a "ter filhos por escolha e não por acaso", estima, em letras garrafais, o impacto para quatro anos da medida tomada pelo novo presidente americano: "6,5 milhões de gravidezes não desejadas; 2,1 milhões de abortos inseguros; 21 700 mortes maternas."A PAI - Population Action International apela: "Parem a Regra da Mordaça Global de Trump!", antes mesmo de se apresentar: "Trabalhamos em cinco regiões, com mais de cem parceiros/países e financiámo-los em mais de cinco milhões de dólares." E continua: "A medida de Trump expande dramaticamente os impactos danosos na saúde"; "Isto é o início da agenda de Trump e Pence para punir todas as mulheres, em todo o lado."
Amordaçar profissionais de saúde
Mas que é afinal a medida tomada por Trump em relação às organizações não governamentais dedicadas à saúde reprodutiva das mulheres no estrangeiro? Que efeitos tem?
Vejamos a explicação dada por Sean Spicer, porta-voz do presidente dos EUA, a 23 de janeiro: "Acaba com a utilização do dinheiro dos impostos dos americanos para financiar abortos no estrangeiro, assim como abortos coercivos e esterilização. (...) Impede que os impostos dos americanos sejam usados no estrangeiro para levar a cabo uma ação contrária aos valores deste presidente." Ora sucede que a lei que faz aquilo que Spicer descreve, conhecida como emenda Helms, existe desde 1973 e nunca foi revogada. Não pode pois tratar-se, neste decreto de Trump, de cortar o financiamento americano para abortos efetuados por ONG no estrangeiro: ele está interdito há décadas.
O que Trump fez foi reativar a Mexico City Policy, um decreto de Reagan exarado em 1984 e anunciado durante uma conferência sobre população na Cidade do México. Trata-se de uma medida que foi decretada por todos os presidentes republicanos pós-Reagan (Bush pai e Bush filho) e revogada pelos democratas (Bill Clinton e Obama) e que retira financiamento a todas as organizações não governamentais a funcionar no estrangeiro que desenvolvam programas de planeamento familiar de que o aborto seja de algum modo parte. Não está em causa só a prática de abortos pelas ONG - que ficam assim impedidas de os fazer, mesmo que para tal usassem dinheiro de outra proveniência -; igualmente interdito é aconselhar ou sequer mencionar a possibilidade de interrupção de gravidez ou enviar a mulher para outra organização que a possa fazer. Até fazer campanha para que a interrupção de gravidez seja legal (coisa que, recorde-se, o aborto é nos EUA desde 1973, graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal) implica exclusão do financiamento americano. Daí que a Mexico City Policy tenha sido crismada como Global Gag Rule (Regra da Mordaça Global): na verdade, ao estabelecer o que pode ou não ser dito por profissionais de saúde a pacientes, levanta sérias questões éticas e deontológicas.
O obstetra e ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida Miguel Oliveira da Silva não tem dúvidas. "As pessoas acham que têm o direito de interferir na relação médico-doente", diz este médico católico. "É uma deriva fundamentalista política. Os políticos não têm de interferir nisso. É importante lutar contra a gravidez indesejada e quanto menos se politizar isso melhor, quanto mais se deixar isso nas mãos de profissionais de saúde pública melhor."
Acresce que, como denunciam os críticos da Mexico City Policy, apesar de o decreto original supostamente só impedir o financiamento de ONG que pratiquem ou refiram ou defendam o aborto como último recurso de planeamento familiar, na prática acaba por levar à exclusão de qualquer prática de aborto - incluindo aqueles para prevenir risco para saúde ou vida da grávida ou os que resultem de violação.
Taxa de aborto pode aumentar 10%
"Este tipo de medida presta-se a efeitos perversos", opina Miguel Oliveira da Silva. "Ao cortar financiamento a organizações que trabalham na área do planeamento familiar, o mais provável é aumentar o número de abortos." Um efeito paradoxal que os estudos feitos sobre o impacto da Mexico City Policy confirmam. É o caso de um estudo de 2011 do departamento de medicina da Universidade de Stanford publicado no boletim da Organização Mundial da Saúde, intitulado "A política de ajuda dos EUA e o aborto na África Subsariana". Estabelecendo que a taxa de fertilidade na África Subsariana é a maior do mundo, 24% acima da desejada, que 80% dos contracetivos são fornecidos por organizações internacionais (os EUA são o maior doador mundial para a saúde das mulheres nos países em desenvolvimento), o estudo inclui dados relativos a 261 116 mulheres em 20 países entre 1994 e 2008 e conclui que a taxa de aborto esteve estável entre 1994 e 2001 (quando Bill Clinton foi presidente e a Mexico City Policy foi revogada) e aumentou sempre entre 2002 e 2008 (presidência de George W. Bush). Demonstra também que a taxa se manteve estável nos países com menos exposição à medida e aumentou visivelmente após 2001 nos países mais expostos, examinando a relação entre o número de anos em que a medida esteve em vigor e a taxa de aborto: "Para cada ano adicional em que a medida está em vigor, a possibilidade de abortar foi 1,21 vezes mais elevada entre mulheres vivendo num país com alto grau de exposição, entre 2001 e 2008, do que nas mulheres dos grupos de controlo." A conclusão é de que foram encontrados "dados empíricos robustos que consubstanciam a conclusão de que a Mexico City Policy está associada ao aumento do número de abortos nos países da África Subsariana. Embora não seja possível tirar conclusões definitivas sobre os motivos desse aumento, a complexa inter-relação entre serviços de planeamento familiar e aborto pode estar envolvida. Se as mulheres veem o aborto como uma forma de evitar ter filhos não desejados, então políticas que dificultam as atividades de organizações que dão acesso a contracetivos modernos podem inadvertidamente conduzir a um aumento da taxa de aborto." Um outro estudo, de 2015, do Food Policy Research Institute, só sobre o Gana - que está entre os 20% de países com maior taxa de morte materna -, conclui que a taxa de gravidez neste país aumentou 10% devido a cortes no financiamento dos EUA que implicaram uma maior escassez na disponibilidade de anticoncecionais. "Em África, 25% dos nascimentos são não desejados", advertem as conclusões. "Os resultados deste estudo sugerem que interrupções ou reduções no fornecimento de contracetivos podem atrasar a transição demográfica em África e resultar numa população mais pobre, menos saudável e menos produtiva no futuro."
Acresce que pela primeira vez a Mexico City Policy vai incidir sobre toda a ajuda externa americana para a saúde nos países em desenvolvimento, e não apenas sobre a que se destina a serviços de planeamento familiar, como antes sucedia. É o que se retira desta frase do decreto: "Ordena ao secretário de Estado [ministro dos Negócios Estrangeiros], em coordenação com o secretário da Saúde [ministro da Saúde], que criem um plano para aplicar os requisitos do decreto reposto [a Mexico City Policy de Bush] à ajuda financeira global para a saúde fornecida por todos os departamentos e agências." Ou seja, estão em causa também os programas de apoio à saúde materna e infantil e à nutrição, de combate ao VIH/sida, às doenças infecciosas, à malária, à tuberculose e às doenças tropicais - todas as ONG que recebam fundos dos EUA para esses fins terão de se comprometer com os termos da Mexico City Policy. A diferença é entre os 575 milhões de dólares alocados à ajuda ao planeamento familiar e um total de nove mil milhões e meio. Como se lê no site da PAI, "a magnitude do impacto nos programas de saúde globais da expansão da medida depende da aplicação do "plano" que vai ser desenvolvido pelos secretários de Estado e da Saúde e como vai ser definido o perímetro de incidência da medida".
Refira-se que, frisa a PAI, as organizações não governamentais americanas a funcionar no estrangeiro que levem a cabo as atividades proibidas pela Mexico City Policy continuam a ser elegíveis para financiamento do Estado dos EUA, desde que essas atividades sejam financiadas de forma alternativa, mas não podem fazer protocolos com ONG estrangeiras a não ser que estas se submetam ao decreto.