A medicina tem de aprender a ouvir

Uma das queixas dos doentes é a dificuldade em falar com o médico. E que aumenta à medida que a tecnologia invade o consultório. Por isso há quem defenda uma cadeira sobre a relação médico/doente.
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A quarta e última tertúlia Medicina e Humanismo, organizada por Luís Machado, com consultoria científica de Luís Nave e realizada no restaurante As Velhas, em Lisboa teve uma audiência de "sonho". Não só a sala estava cheia para ouvir as palavras de Constantino Sakellarides, Júlio Machado Vaz e Manuel Sobrinho Simões como juntaram dois palestrantes da última tertúlia: Joshua Ruah e Mário Andrea. Rosália Amorim, que moderou a conversa, deu o mote referindo que falar de medicina e humanismo é fazer (e falar) também de serviço público. E apontou que, com a guerra na Ucrânia, o humanismo na medicina voltou a estar em cima da mesa "se é que alguma vez de lá saiu".

Para fomentar o debate a diretora do DN lembrou alguns dados revelados recentemente por um estudo da NOVA Information Management School (NOVA IMS) que indicavam que mais de 62% dos portugueses procuram cuidados de saúde como medida de prevenção e quase 79% dizem estar bem informados sobre o seu estado de saúde e sabem como prevenir uma doença. Sobre estes números Sobrinho Simões apontou que Portugal tem uma posição excessivamente binária sobre o que está bem e o que está mal. O médico não acredita nos valores do estudo, referindo que se 62% dos portugueses se preocupassem a sério com a prevenção tudo seria muito diferente. Quanto à oncologia, especialidade a seu cargo, confessa estar muito mais preocupado com a questão do diagnóstico precoce - "que é mais importante que o tratamento do cancro" - e com questões como a obesidade, a diabetes, a hipertensão, as alterações mentais... A verdade é que as pessoas vivem cada vez mais tempo e isso traz mais patologias. É inevitável.

Manuel Sobrinho Simões aproveitou para desmistificar uma mensagem muito difundida. É verdade que, com a pandemia, aumentaram os casos diagnosticados tarde demais. Mas isso foram algumas exceções. Porque para o médico o problema não foi a pandemia em si, mas o facto de o diagnóstico precoce não funcionar. Porque são poucos os cancros que se desenvolvem nos dois anos que durou a pandemia.

Infelizmente, como foi referido, "a saúde não dá nem votos nem dinheiro", já a "doença, infelizmente, dá votos e muito dinheiro".

"Idealmente o título desta tertúlia - Medicina e humanismo - não deveria fazer sentido nenhum", afirmou Júlio Machado Vaz, acrescentando que uma medicina que não coloca o paciente no centro é uma medicina que falha. O problema, para o sexólogo, reside na falta de formação em comunicação. E aponta que a principal queixa dos doentes tende a ser isso mesmo - a dificuldade de comunicar com os médicos, por contraponto à facilidade em falar com os enfermeiros. É por isso que Júlio Machado Vaz defende que os cursos de Medicina deveriam ter uma cadeira sobre a relação médico/doente. Algo que, com o avançar da implementação e utilização da tecnologia, torna-se cada vez mais necessário.

Constantino Sakellarides foi desafiado a falar da sustentabilidade do sistema. E sobre isso referiu que a mesma não vai acontecer sem transformação, sendo que "o nosso sistema precisa de uma profunda transformação". Há que perceber que "estar doente com três ou quatro patologias dá muito trabalho" e que o médico, dependendo da prescrição, pode ajudar o doente no trabalho de estar doente. Como? Basta pensar no quotidiano do seu paciente. Mas, mais importante do que tudo é "ouvir as pessoas". Porque a verdade, refere, é que "falamos muito e ouvimos muito pouco". Infelizmente a anterior relação médico-doente tem hoje um intermediário: o computador, que cada vez ganha mais importância.

Esta importância dada à tecnologia leva a uma questão. A introdução da robótica e da inteligência artificial pode levar à desumanização da medicina? Na opinião de Manuel Sobrinho Simões a resposta é não. E não porque os robôs não têm competência - que, na opinião do médico, é o que falta em Portugal. Por outro lado, acrescenta Júlio Machado as máquinas não percebem a ambivalência. Só entendem o lado racional. Ora, o ser humano tem muito de irracional. Isto apesar de a tecnologia ter a seu favor a isenção, a falta de conflito de interesses e uma maior capacidade de diagnóstico. Mas, lembra o sexólogo, e quando o sistema vai abaixo? "A inteligência artificial, em muitos níveis, pode contribuir para a nossa prática clínica", refere. Nem que seja o permitir que o médico tenha tanto tempo de consulta como tinha há 30 anos. No entanto a opinião generalizada é que nada pode substituir o homem. Sobre isso Joshua Ruah referiu a digitalização "que nós temos agora ao nosso dispor é de uma utilidade muito boa, do ponto de vista da velocidade da informação, mas não pode ainda - ênfase no "ainda" - substituir-nos". Para o médico o que há é um erro de utilização quando se julga que, por um médico ter um computador vai fazer um melhor diagnóstico da doença. "Não vai", afirma. Pelo menos para já. Mário Andrea, por seu lado, apontou que, por um lado, os médicos e a medicina trabalham cada vez mais em colaboração. No entanto também apontou que há que aprender a trabalhar com outras profissões. E isso, muitas vezes, implica aprender um pouco de humildade.

Antes de sair Constantino Sakellarides abordou algo que está a - e vai - transformar a medicina. A Comissão Europeia quer criar um espaço europeu de dados, incluindo o setor da saúde. Um espaço europeu comum de dados de saúde promoverá um melhor intercâmbio e acesso a diferentes tipos de dados de saúde (registos de saúde eletrónicos, dados genómicos, dados dos processos clínicos dos doentes, etc.), não só para apoiar a prestação de cuidados de saúde (a chamada utilização primária dos dados), mas também para fins de investigação e de elaboração de políticas no domínio da saúde (a chamada utilização secundária dos dados). Algo extremamente importante, assente na digitalização da informação de saúde e que vai facilitar a vida do doente... e do médico. E não se trata de futuro. Como afirmou Sakellarides trata-se de um projeto que vai emergir em 2025. Não abordando diretamente este tema, Joshua Ruah afirmou que todos deveriam ser proprietários da sua informação pessoal. É certo, acrescentou, que já há alguma interligação entre alguns hospitais públicos e privados. Mas ainda é insuficiente.

dnot@dn.pt

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