A maior sinagoga ibérica tem as portas abertas
Começou por ser um sonho de um militar português convertido ao judaísmo e que idealizou no Porto a construção de uma monumental sinagoga. O capitão Barros Basto tinha em vista o retorno de muitas famílias judias expulsas do país. E a obra, iniciada em 1929, foi concretizada em 1938 quando foi inaugurada aquela que é a maior sinagoga da Península Ibérica e uma das maiores da Europa. Hoje, o templo judaico tem as portas abertas ao público e criou mesmo um museu, onde se podem encontrar pedaços da história do judaísmo, e das perseguições de foi alvo em Portugal.
Foi há cerca de dois anos que a sinagoga Kadoorie Mekor Haim abriu portas a visitantes judeus e não judeus. A ideia da comunidade israelita do Porto surgiu após o início da reabilitação de Barros Basto, que foi expulso do exército em 1937, e pretende dar a conhecer um edifício de características Art Deco, raro, além de divulgar a cultura judaica. "É uma forma de com- bater preconceitos. Muita gente ainda pergunta se somos uma sociedade secreta", diz Hugo Vaz, o elemento que diariamente recebe os visitantes e os guia através da história da sinagoga.
Receber turistas, portugueses ou estrangeiros, e crianças, em visitas escolares, foi plenamente conseguido, com milhares de pessoas, desde 2012, a cruzarem o portão na Rua Guerra Junqueiro, na zona da Boavista. "Em 2014, tivemos dez mil visitantes, neste ano vamos ultrapassar esse número claramente", revela Hugo Vaz, reconhecendo que a sinagoga até fica situada numa área da cidade onde os turistas pouco circulam. "A maioria chega cá por vontade de conhecer mesmo a sinagoga." Além de portugueses, os espanhóis são os que mais visitam o espaço. Também há muitos americanos.
A comunidade israelita foi fundada em 1923 pelo capitão Barros Basto, um oficial do Exército que em 1910 ergueu no Porto a bandeira na implantação da República. Converteu-se em 1920 em Marrocos, já que a mãe não era judia, o que é uma condição essencial para se ser judeu, daí a necessidade de um processo de conversão. Não há proselitismo no judaísmo. Artur Barros Basto viria a ser vítima de preconceito antissemita ao ser expulso do Exército, em 1937, por participar em circuncisões.
Em 1929 iniciou a obra de construção da sinagoga. "Obteve apoio da comunidade judaica internacional, muitos fundos foram doados, envolvendo também de comunidades portuguesas no mundo. Terá chegado dinheiro dos famosos Rotschild, mas o maior contributo saiu dos cofres dos Kadoorie, uma família de Hong-Kong que doou cinco mil libras. Laura Matos Kadoorie era descendente de portugueses e o marido era um dos homens mais ricos da época na então colónia britânica. Hoje ainda é vivo um dos filhos do casal. Michael Kadoorie já foi convidado mas nunca veio a Portugal visitar a sinagoga que tem o nome da família na sua designação oficial.
A construção do templo durou quase nove anos. Teve como arquitetos Almeida Júnior e Augusto Malta, com o mestre Rogério de Azevedo a colaborar, julga-se que sobretudo nos interiores onde dominam decorações de estilo marroquino-sefardita. "Tem 20 mil azulejos, todos portugueses e pintados à mão", frisa Hugo Vaz.
Esta sinagoga de grande modernidade arquitetónica para a época concretizava assim o sonho de Barros Basto. "É monumental porque, apesar da na altura não haver uma comunidade muito grande, o capitão Barros Basto acreditava que muitos iriam regressar." Não foi exatamente assim. Embora hoje, com o Estado português a conceder a nacionalidade a descendentes de judeus sefarditas expulsos, possa aumentar o número. Já há 900 que pediram a nacionalidade.
Fora do Exército, Barros Basto ainda esteve na inauguração da sinagoga que terá sido a última a abrir portas antes da Segunda Guerra Mundial. Por ironia, ao lado na mesma Rua Guerra Junqueiro localizava-se o Colégio Alemão. "Foram plantadas árvores altas, que ainda hoje ali estão, para que as crianças alemãs não vissem os judeus", recorda Hugo Vaz, ressalvando que "apesar disso nunca houve grandes problemas. Portugal foi neutral e permitiu a entrada de 80 a cem mil judeus".
Para se entrar na sinagoga, a tradição obriga ao uso de kippah na cabeça. Durante a oração, um judeu deve ter a cabeça coberta em sinal de respeito a Deus. "Os homens devem usar e todos os visitantes recebem uma para poderem aceder ao interior da sinagoga. Para as crianças também temos e acaba por ser engraçado. Ficam curiosas e possibilita que compreendam melhor a cultura judaica", refere o membro da comunidade que lida com os visitantes.
O interior tem a austeridade natural de um local de culto. Existe a arca sagrada, onde está a Torah, que é retirada para os serviços religiosos. Está sempre virada para Jerusalém, como manda a tradição. Os homens são os únicos que podem ficar na parte principal, no rés-do-chão. As mulheres ficam em cima, num primeiro andar em redor do espaço central. "Esta é uma comunidade judia ortodoxa e mantém os rituais", explica Hugo Vaz, rejeitando que haja qualquer subalternidade da mulher. "É assim nestas cerimónias, mas, se verificar, a comunidade tem como vice-presidente Isabel Ferreira Lopes, mulher e que é neta do capitão Barros Basto."
Nas orações judias, há outras diferenciações, com lugares especiais para certos membros da comunidade. Todos os serviços são em hebraico e fechados ao público. As visitas não são permitidas ao sábado, dia sagrado dos judeus e em que a sinagoga se fecha para a religiosidade.
No total, estima a comunidade judaica portuense, há cerca de 50 famílias do Grande Porto que compõem o núcleo de praticantes e frequentadores da sinagoga, em que o rabi é o argentino Daniel Litvak. "A comunidade não é muito grande", admite Hugo Vaz.
Mas a sinagoga é mais do que a casa do grupo de judeus da cidade. "Abrir as portas foi possibilitar conhecer este espaço e esta cultura. Todos os judeus vêm visitar, mesmo os não praticantes. Também existem, tal como na Igreja Católica, nem todos os judeus são praticantes regulares. Muitos vêm cá nas principais datas do judaísmo."
O Porto cumpre assim o sonho de Barros Basto, mesmo sem ser uma cidade com muitos judeus. Belmonte e, sobretudo, Lisboa dominam e, de acordo com os Censos de 2011, existem cerca de três mil judeus em Portugal.
A atração dos não judeus tem agora um novo foco, desde a inauguração do museu em maio passado. "Foi um passo importante." Assim em salas no primeiro andar da sinagoga é possível encontrar diversas relíquias. Numa das salas funcionou, logo nos primeiros dias do edifício que mais tarde se tornou sinagoga, uma escola. Entre 1930 e 1935, o Instituto Teológico Israelita, criado em regime de internato, teve ali as suas instalações. Chegou a ter 80 alunos e é possível ver carteiras antigas, o quadro de madeira preto e vários mapas. Há muitos mais (ler em baixo) e seu o património tem valor histórico importante.
A sinagoga, estando aberta a todos, pode gerar preocupações de segurança. Foi notícia em janeiro que a sinagoga tinha colocado rede sobre os muros, de forma a reforçar a segurança. "Os muros eram baixos e resolveu-se aumentá-los, muito antes do atentado do Charlie Hebdo. Mas houve uma coincidência temporal que levou a que se fizessem associações", afiança Hugo Vaz.
Quando se chega é obrigatório tocar à campainha. Transposto o portão, anda sempre um cão pastor-alemão - raça animal que foi um dos símbolos da Alemanha nazi e era adorada por Hitler - e um elemento destacado para a segurança. "São precauções naturais", frisa Hugo Vaz, realçando que não há muitos espaços como este do Porto: "Pelo mundo fora não há muitas sinagogas, das ativas, que tenham as portas abertas a todos."
Joana Tomé, outro membro da comunidade que recebe os visitantes, assegura igualmente que não há motivos para se ver nas medidas de segurança qualquer restrição. "A falta de informação é que cria medo e desconfiança", diz, garantindo que todas as pessoas são bem recebidas.
Barros Basto morreu em 1961 e hoje está a ser reabilitado pelo Estado português. O Exército já cumpriu a sua parte mas o processo ainda está entravado na Assembleia da República. Mas todos esperam a sua conclusão.
Museu e paredes com mistério para atrair crianças e turistas
A criação do Museu Judaico do Porto foi uma etapa decisiva na abertura da comunidade e na divulgação da sua grande história cultural. Aberto a 21 de maio passado, o espaço fez crescer o interesse pela sinagoga. Michael Rothwell, um dos membros da comunidade que assumiram a responsabilidade do museu, diz que "pretende atrair, predominantemente, crianças e turistas. Os primeiros, as crianças, representam o dia de amanhã e os segundos, os turistas, uma indústria de paz. Este local de conhecimento irá enriquecer os roteiros turísticos da cidade".
Além de diversos objetos, como uma cadeira antiga onde se realizavam as circuncisões, e muitos documentos e fotos, há outros motivos de interesse como uma lista de 842 nomes de vítimas da Inquisição entre 1541 e 1737, só da zona do Porto. Foram os cristãos--novos condenados por prática de "heresias judaizantes". A vítima mais velha tinha a idade de 110 anos. A mais nova tinha apenas 10 anos.
E há mesmo algum mistério no edifício, não necessariamente no espaço que o museu ocupa. Na entrada da sinagoga, existe um painel de azulejos que já levou a uma intervenção. De acordo com elementos da Comunidade Israelita do Porto, os azulejos podem esconder uma placa (nunca vista mas que se pensa existir) que pretendia evocar a memória das vítimas da Inquisição. "Essa placa teria sido mandada colocar, aquando da construção do edifício, pelo então capitão Barros Basto. Para evitar fricções com o Estado Novo e a Igreja Católica, foi aconselhado a tapar esta peça e que, por isso, foram mandados fazer os quatro painéis de azulejos que hoje decoram a sala de entrada", explica o responsável da comunidade.
A busca dessa placa foi equacionada mas ficou a meio. Uma intervenção na parede esteve agendada, só que especialistas concluíram que poderia causar danos irreparáveis. Permanece o mistério sobre se existe ou não, na entrada da sinagoga, escondida por azulejos, uma placa e qual o seu conteúdo.
Ocupam também lugar de destaque registos documentais, provenientes de Hong Kong, sobre a família de beneméritos Kadoorie e a sua ligação aos judeus do Porto.