A maior cantora do Brasil morreu numa manhã de sol de há 35 anos
Na noite de 18 de janeiro de 1982, Elis Regina recebeu amigos para jantar na sua casa na Rua Melo Alves, em São Paulo, incluindo o namorado da época, o advogado Samuel McDowell. Ao longo do serão todos foram saindo, até McDowell, porque a cantora queria concentrar-se nas músicas do disco que se preparava para gravar. Horas depois, já manhã de sol, McDowell ligou para Elis. Assustou-se porque no final do telefonema ela mais balbuciava do que falava. Correu para o apartamento, arrombou duas portas e encontrou-a inanimada no quarto. Chamou uma ambulância, que a conduziu ao Hospital das Clínicas, onde chegou morta, aos 36 anos, vítima de overdose de cocaína e álcool. Morria a maior cantora do Brasil. A maior cantora do Brasil? E Gal? E Bethânia?
[youtube:GbgVYW8pZmg]
Há dois anos, o jornal Zero Hora, da mesma Porto Alegre onde Elis Regina Carvalho Costa nasceu em 1945, convidou críticos a responder àquela pergunta: a maioria escolheu Elis sem hesitar, a minoria diplomática equiparou-a às duas citadas acima. Júlio Maria, biógrafo da cantora e crítico de música no jornal O Estado de S. Paulo, conta que um dia Caetano Veloso, irmão de Maria Bethânia e quase irmão de Gal Costa, lhe disse "Elis foi a maior". A revista Rolling Stone elegeu-a melhor voz feminina do país, em 2013. Noutra sondagem, colocou-a em 14.º - a primeira mulher - na lista dos principais artistas da música brasileira. Foi ela a primeira pessoa a inscrever a sua voz como se fosse um instrumento na Ordem dos Músicos do Brasil. Compararam-na nos EUA a Ella Fitzgerald, a Billie Holiday, a Sarah Vaughan. Aclamaram-na enquanto intérprete de samba, jazz, rock, bossa nova, de música popular brasileira (MPB).
[amazon:2017/01/alies2_20170119092332]
"Desde a sua morte, num país onde surgem duas novas cantoras por dia, jamais surgiu outra à altura de Elis Regina; mesmo antes da sua existência, jamais houve uma cantora no país à altura de Elis Regina", afirma Júlio Maria. Outros críticos falam em técnica, em afinação, em extensão de voz como pontos fortes. Há quem cite a alma.
Elis começou a cantar aos 11 anos na sua cidade natal, aos 16 gravou o primeiro disco, antes dos 20 já tinha a agenda lotada em espetáculos no Rio de Janeiro e em São Paulo e era atração de programas de televisão. Ganhou festivais - a sua vitória num, em que cantou Arrastão, de Vinícius de Moraes e Edu Lobo, foi considerado o marco inaugural da MPB - e fez parcerias antológicas com todos os ícones nacionais, como Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e outros. Aos 36, estava no auge.
[amazon:2017/01/elis_20170119092154]
Por causa do mito, atrizes experimentadas como Andreia Horta e Laila Garin, que a interpretam respetivamente no filme Elis e na peça de teatro Elis, a Musical, relatam o medo que sentiram. "Sonhava com ela, sonhava que estava falando com quem a conheceu", disse uma; "eu não sonhava porque nem conseguia dormir", afirmou outra.
Porque o peso da personagem Elis vai além da música. Numa época de machismo exacerbado, escolheu ter controlo pleno da sua carreira. Em plena ditadura militar - 1964-1985 - fez ferozes críticas ao regime e participou em movimentos de renovação política e cultural. Casou duas vezes, com o músico Ronaldo Bôscoli, pai do seu primeiro filho, o produtor João Marcelo Bôscoli, e com o pianista César Camargo Mariano, pai dos cantores Maria Rita e Pedro Mariano (ver entrevista), além de ter mantido outras relações tempestuosas porque na sua vida tudo era algo tempestuoso.
[youtube:xRqI5R6L7ow]
Ganhou de Vinícius de Moraes a alcunha de Pimentinha por ferver em pouca água - os amigos referem-se a ela como "geniosa", "revoltada", "contraditória", "agitada", "exigente". "Se ser geniosa e exigente e não gostar de ser passada para trás é ser mau carácter, então eu sou", disse a própria numa entrevista. E noutra: "Viver como um kamikaze é o que me faz ficar de pé." Ficou de pé até aquela manhã de sol de 19 de janeiro de 1982. A voz de Elis, porém, resiste. Como disse o produtor Walter Carvalho muitos anos após a sua morte, "a Elis Regina está cantando cada vez melhor".
Em São Paulo