A magia que muda a vida de bebés, idosos e doentes
É quarta-feira, passa das 22.30, quando o maestro Paulo Lameiro e companhia aterram no parque de estacionamento da SAMP (Sociedade Artística e Musical dos Pousos), que àquela hora ainda fervilha. A banda filarmónica - génese de todo o movimento cultural daquela coletividade - ensaia no auditório principal no momento em que regressam de Lisboa dois carros cheios de música: ao longo desta semana um grupo da Sociedade fez a viagem todos os dias para gravar um cd nos estúdios do Lumiar, com músicas originais.
"Só tínhamos esta semana para o fazer, tem de ser assim, desta forma intensa", justifica ao DN Raquel Gomes, uma parte daquele corpo que dá vida à SAMP, enquanto sobe as escadas que leva ao gabinete da direção, de onde se vê (e ouve) o ensaio. De modo que esta conversa tem uma banda sonora variada, que vai desde as composições clássicas aos ritmos de Santana, e que vibra nas paredes daquele edifício. Porque no princípio, era (apenas) a música. Corria o ano de 1873 quando o barão de Viamonte (dono de grande parte das propriedades à volta de Leiria) acedeu ao pedido de um grupo de trabalhadores rurais para formar uma banda filarmónica. E logo aí anunciava-se a marca cultural que haveria de imprimir em Leiria e no país, pois que entre os sócios fundadores está Eça de Queirós.
A SAMP já era (re)conhecida, mas o prémio "coesão" que esta semana recebeu da Fundação Calouste Gulbenkian foi acolhido com especial entusiasmo. Atribuído de cinco em cinco anos, a uma entidade internacional e três nacionais, a designação varia. "Este ano houve três modalidades e a da SAMP é a coesão - com destaque para a terceira e quarta idade, para instituições que têm na sua atividade normal um cuidado com a coesão etária, até ao fim da vida". Quem conta ao DN essa história é Paulo Lameiro, nascido e criado na aldeia de Pousos, e que aos 8 anos entrou na banda filarmónica para tocar feliscorne e trompete.
"A imagem que dá a conhecer a SAMP com a criação da escola de artes são os projetos com bebés, há 25 anos. Depois alargaram-se a bebés com deficiência, a populações com deficiência que não bebés, e há uma descoberta da nossa parte enquanto profissionais. Os bebés na verdade têm tudo: os pais que lhes dão tudo, concertos, cd"s, canais de tv, revistas, e percebemos que no final da vida não aprendemos a ser filhos, só aprendemos a ser pais. E por isso não temos uma relação com a terceira idade e com aqueles que são anteriores a nós". Foi assim que começou a esboçar-se o programa "Novas primaveras", um projeto só para idosos, que inaugura esta preocupação com a terceira e quarta idades.
"Começou por ser para idosos institucionalizados - em lares e centros de dia, e entretanto apoio domiciliário. Foi quando começámos a perceber que nos lares, para além de idosos, estão pessoas com Alzheimer, Parkinson, em cuidados paliativos, e de todas as idades", recorda Paulo Lameiro. E o projeto ramificou-se. "O mais recente - acredito que seja o que está talvez na origem deste prémio - é destinado ao momento terminal. Nós cuidamos muito do momento do nascimento, mas não cuidamos o momento da morte. E hoje morremos fora das nossas famílias, num ambiente completamente estranho. Foi assim que nasceu o projeto "Aqui Contigo" para estados terminais de todas as idades". Atualmente, na SAMP cruzam-se projetos artísticos com idosos, doentes mentais, cresce um laboratório de musicoterapia no Hospital de Leiria, um programa para quem tem dor crónica - o Dói Menor; cresce outro para a comunidade cigana - Il Trovatore; para reclusos - Ópera na Prisão. E estes diferentes públicos atraíram a atenção de várias áreas da investigação , das artes, da sociologia, da política. Paulo Lameiro - que assume a direção artística - sublinha que "há muitas instituições do país que trabalham com reclusos ou com idosos, ou com bebés, o que não há é uma instituição e uma equipa que trabalhe com todas estas pessoas".
Do voluntariado ao profissionalismo
Quando a SAMP se candidatou ao prémio da Gulbenkian não o fez "por aquilo que é o reconhecimento da instituição, mas antes porque temos vindo a fazer várias candidaturas para um projeto para a terceira idade, que se chama "palco em casa", uma espécie de festival ao domicílio, onde o idosos - especialmente de zonas rurais - pode escolher um artista que vai a sua casa fazer um concerto", sustenta Paulo Lameiro. Mas esse é apenas um dos 17 programas da SAMP, onde "os profissionais que trabalham com idosos de manhã, são os mesmos que à quarta-feira estão com doentes mentais ou pessoas com dor crónica, que ao fim dia vão para as sessões com bebés e famílias, e que no sábado vão trabalhar com ciganos". Como é o caso de Raquel Gomes, envolvida numa panóplia de projetos, desde o Novas Primaveras ao Aqui Contigo, Alegro Pediátrico (na pediatria do Hospital de Santo André), entre outros. "Há uma coisa que é comum nestes programas, mas também na SAMP: o estar com as pessoas. Além de levar a música, é isto que nos move". O marido já foi presidente da coletividade, os filhos frequentam a casa, e isso mostra como o espírito associativo vai passando por ali, sob as mais diversas facetas. "Os projetos vão nascendo à medida que percebemos que há mais população que precisa deles", sublinha Raquel, que integra o quadro de 38 professores, e o núcleo mais restrito da equipa que desenvolve estes programas.
Paulo Lameiro acrescenta que, de início, todos eles começaram com voluntários a 100%. "Mas hoje em dia as competências que são requeridas a profissionais desta área, mas também humanas, sociais, e da saúde. E por isso fizeram formação em terapias específicas, em musicoterapia".
A coletividade conquistou há muito o estatuto de utilidade pública. Ali cabem muitas coisas, afinal. O núcleo Saúde com Arte é só uma delas, a par da banda filarmónica, do coro, entre outras atividades. Quando esse núcleo nasceu, há 25 anos, "era residual. Limitava-se a ser um conjunto de projetos para bebés de berço, que integrava crianças com deficiência", feito à base do voluntariado. Hoje são nove profissionais, e desses sete trabalham na SAMP a tempo inteiro, nesses programas. "Para bem de nós próprios e dos projetos, nenhum de nós trabalha em exclusividade para o Saúde com Arte. Porque nós só podemos estar bem com um idoso em estado terminal, ou com uma pessoa com dor crónica ou com os reclusos na prisão se pudermos levar alguma qualidade artística e relacional, se fizermos trabalho com grupos diferentes", diz Lameiro.
Vera Marques, outra professora do grupo, acredita que reside aí o segredo. "O facto de trabalharmos com gente tão diferente faz com que transportemos as diferentes energias de uns projetos para os outros. E outra coisa muito importante: para além de estar, é olhar a pessoa e não a doença, a condição ou a etnia. E com isso transformar ou melhorar a qualidade de vida dela". Ali todos cantam, todos tocam pelo menos um instrumento. A guitarra é aquele que os acompanha em quase todos os projetos. Paulo Lameiro lembra que a SAMP é na sua matriz "uma instituição artística, em que a música é fundamental, mas há também no grupo o teatro e a dança, muito presentes.
É quase meia noite quando se apagam as luzes da SAMP, à beira da estrada que liga Leiria a Fátima. A banda já acabou o ensaio, o grupo vai agora jantar, regressa à capital daqui por sete horas. "Posso-me ir embora? O professor Paulo tem a chave?", pergunta Acácio Lopes, 71 anos, músico da banda que é da casa desde sempre. Apesar da escala que a SAMP ganhou, continua a ser a coletividade da aldeia onde todos se conhecem