A luta interna da América

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Quase um ano após a vitória eleitoral de Joe Biden sobre Donald Trump, os Estados Unidos continuam no fio da navalha. Muitas consequências políticas são possíveis. Isso vai desde a reforma económica e política gradual que Biden deseja, até à subversão das eleições e do regime constitucional que Trump tentou em janeiro passado e que tanto ele como o Partido Republicano mantêm a intenção de continuar a tentar.

Não é fácil diagnosticar exatamente o que aflige tão profundamente a América no seu âmago que estimulou o movimento Trump. São as incessantes guerras culturais que dividem a América por raça, religião e ideologia? É o aumento da desigualdade de riqueza e poder a níveis sem precedentes? É o poder global decrescente dos Estados Unidos, com a ascensão da China e os repetidos desastres das guerras lideradas pelos Estados Unidos, levando à angústia nacional, frustração e confusão?

Todos esses fatores estão em jogo na tumultuosa política americana. Ainda assim, na minha opinião, a crise mais profunda é política - o fracasso das instituições políticas dos Estados Unidos em "promover o bem-estar geral", como promete a Constituição dos EUA. Nas últimas quatro décadas, a política norte-americana tornou-se um jogo interno para favorecer os super-ricos e os lóbis empresariais às custas da esmagadora maioria dos cidadãos.

Warren Buffett concentrou-se na essência da crise em 2006. "Há uma guerra de classes, tudo bem", disse ele, "mas é a minha classe, a classe rica, que está a fazer a guerra, e nós estamos a ganhar."

O principal campo de batalha está em Washington, DC. As tropas de choque são os lobistas empresariais que enxameiam o Congresso dos Estados Unidos, departamentos federais e agências administrativas. A munição são os milhares de milhões de dólares gastos anualmente no lóbi federal (cerca de 3,5 mil milhões em 2020) e as contribuições de campanha (cerca de 14,4 mil milhões nas eleições federais de 2020). Os propagandistas pró-guerra de classes são os meios de comunicação empresarial, liderados pelo megamilionário Rupert Murdoch.

Há quase 2500 anos, Aristóteles fez a famosa afirmação de que um bom governo pode transformar-se num mau governo com uma ordem constitucional defeituosa. As repúblicas, governadas pelo Estado de direito, podem cair no domínio da multidão populista, ou no domínio oligárquico de uma classe pequena e corrupta, ou na tirania do governo pessoal de um homem só. Os Estados Unidos enfrentam esses possíveis desastres, a menos que o sistema político se consiga desligar da corrupção massiva do lóbi empresarial e do financiamento de campanha pelos ricos.

A guerra de classes da América contra os pobres não é nova, mas foi lançada a sério no início dos anos 1970 e implementada com eficiência brutal nos últimos 40 anos. Durante cerca de três décadas, desde a posse do presidente Franklin D. Roosevelt em 1933 no meio da Grande Depressão até ao período Kennedy-Johnson de 1961-68, a América esteve geralmente no mesmo rumo de desenvolvimento que a Europa Ocidental do pós-guerra, tornando-se uma social-democracia. A desigualdade de rendimento estava a diminuir, e mais grupos sociais, principalmente afro-americanos e mulheres, juntavam-se à principal corrente dominante da vida económica e política.

Então veio a vingança dos ricos. Em 1971, um advogado empresarial, Lewis Powell, apresentou uma estratégia para reverter as tendências social-democratas em direção a uma regulamentação ambiental mais forte, direitos dos trabalhadores e tributação justa. As grandes empresas reagiriam. O presidente Richard Nixon indicou Powell para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos em 1971, e ele prestou juramento no início do ano seguinte, permitindo-lhe colocar o seu plano em ação.

Sob o estímulo de Powell, o Supremo Tribunal abriu as comportas para o dinheiro das empresas na política. Em Buckley versus Valeo (1976), o tribunal derrubou os limites federais aos gastos de campanha de candidatos e grupos independentes como violações da liberdade de expressão. Em First National Bank of Boston versus Belotti (1978), Powell escreveu a opinião da maioria declarando que os gastos empresariais para argumentação política eram liberdade de expressão que não podia estar sujeita a limites de gastos. O ataque do Tribunal aos limites do financiamento de campanha culminou em Citizens United versus Federal Elections Commission (20210), que essencialmente acabou com todos os limites sobre os gastos empresariais na política federal.

Quando Ronald Reagan se tornou presidente em 1981, ele reforçou o ataque do Supremo Tribunal ao bem-estar geral cortando impostos para os ricos, atacando o trabalho organizado e reduzindo as proteções ambientais. Essa trajetória ainda não foi revertida.

Como resultado, os EUA divergem da Europa em decência económica básica, bem-estar e controlo ambiental. Enquanto a Europa em geral continuou no caminho da social-democracia e do desenvolvimento sustentável, os EUA seguiram em frente por um caminho marcado pela corrupção política, oligarquia, um fosso cada vez maior entre ricos e pobres, o desprezo pelo meio ambiente e a recusa em limitar alterações climáticas induzidas pelo homem.

Alguns números mostram as diferenças. Os governos da União Europeia arrecadam receitas de cerca de 45% do PIB, enquanto as receitas do governo dos EUA chegam a apenas a cerca de 31% do PIB. Portanto, os governos europeus podem pagar pelo acesso universal a cuidados de saúde, ensino superior, apoio à família e formação profissional, enquanto os Estados Unidos não garantem o fornecimento desses serviços. A Europa está no topo da lista do Relatório Mundial de Felicidade de satisfação com a vida, enquanto os Estados Unidos ocupam apenas a 19.ª posição. Em 2019, a esperança de vida na UE era de 81,1 anos, em comparação com 78,8 anos nos EUA (que tinha uma esperança de vida superior à da UE em 1980). Em 2019, a participação de 1% das famílias mais ricas no rendimento nacional era de cerca de 11% na Europa Ocidental, em comparação com 18,8% nos Estados Unidos. Em 2019, os EUA emitiram 16,1 toneladas de dióxido de carbono por pessoa, em comparação com 8,3 toneladas de CO2 por pessoa na UE.

Em suma, os EUA tornaram-se um país dos ricos, pelos ricos e para os ricos, sem nenhuma responsabilidade política pelos danos climáticos que estão a impor ao resto do mundo. As clivagens sociais resultantes levaram a uma epidemia de mortes por desespero (incluindo overdoses de drogas e suicídios), à redução da esperança de vida (mesmo antes da covid-19) e ao aumento das taxas de depressão, especialmente entre os jovens. Politicamente, essas perturbações levaram a várias direções e, de forma mais sinistra, a Trump, que ofereceu um falso populismo e um culto da personalidade. Servir os ricos enquanto distrai os pobres com xenofobia, guerras culturais e pose de homem forte pode ser o truque mais antigo do manual do demagogo, mas ainda funciona surpreendentemente bem.

Esta é a situação que Biden está a tentar corrigir, mas os seus sucessos até agora têm sido limitados e frágeis. O simples facto é que todos os congressistas republicanos e um pequeno, mas decisivo grupo de democratas (mais notoriamente os senadores Joe Manchin, da Virgínia Ocidental e Kyrsten Sinema do Arizona), pretendem bloquear qualquer aumento significativo de impostos sobre os ricos e as empresas americanas, evitando assim o crescimento das receitas federais, que é urgentemente necessário para criar uma sociedade mais justa e verde. Eles também estão a bloquear ações decisivas sobre as alterações climáticas.

Assim, estamos a chegar ao final do primeiro ano de Biden com os ricos ainda entrincheirados no poder e com obstáculos em todas as direções em relação à tributação justa, aumento dos gastos sociais, proteção dos direitos de voto e salvaguardas ambientais urgentemente necessárias. Biden ainda poderá conquistar algumas vitórias modestas e, em seguida, aproveitá-las nos próximos anos. O público quer isso. Aproximadamente dois terços dos americanos são a favor de impostos mais altos sobre os ricos e as empresas.

No entanto, há uma possibilidade real de que os reveses de Biden em 2021 ajudem os republicanos a obter o controlo de uma ou de ambas as câmaras do Congresso em 2022. Isso poria fim às reformas legislativas até pelo menos 2025 e poderia até pressagiar o regresso de Trump ao poder nas eleições presidenciais de 2024, no meio de desordem social, violência, propaganda na comunicação social e repressão eleitoral em estados controlados pelos republicanos.

A turbulência na América tem implicações internacionais perturbadoras. Os EUA não podem liderar reformas globais quando não conseguem sequer governar-se a si próprios de forma coerente. Talvez a única coisa que une os americanos hoje em dia seja um sentimento exagerado de ameaças do exterior, principalmente da China. Com a América em desordem interna, os políticos de ambos os partidos intensificaram a sua retórica anti-China, como se uma nova Guerra Fria pudesse de alguma forma acalmar a angústia interna da América. A única coisa que a beligerância bipartidária de Washington produzirá, infelizmente, é mais tensão global e novos perigos de conflito (em relação a Taiwan, por exemplo), e não segurança ou soluções reais para qualquer um dos nossos problemas globais urgentes.

Os EUA não estão de volta, pelo menos ainda não. Ainda estão a lutar para superar décadas de corrupção política e negligência social. O resultado permanece altamente incerto e as perspetivas para os próximos anos são repletas de perigos para os Estados Unidos e o mundo.


Jeffrey D. Sachs, professor da Universidade de Columbia, é diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia e presidente da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

© Project Syndicate, 2021.

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