A longa solidão da tradutora

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Trabalho exigiu dedicação total, zero folgas e uma disciplina "espartana"

A longa solidão da tradutora

Na sua sala de trabalho, forrada de livros e com uma janela de vidro duplo a garantir silêncio absoluto, Margarida Periquito folheia o enorme volume do Orlando Furioso, editado pela Cavalo de Ferro no final de 2007. São 750 páginas, 46 cantos, cerca de 40 mil versos rimados e mais de 400 ilustrações de Gustave Doré. Um monumento literário único, sobretudo se tivermos em conta que é a primeira tradução integral para português alguma vez feita - ainda por cima em versão rimada e num prazo impossível. Antes, um professor brasileiro levara 22 anos a traduzir apenas os oito primeiros cantos. Um académico inglês traduziu tudo em cinco anos, mas numa versão sem rima. Já a tradutora portuguesa concluiu a tarefa hercúlea em menos de um ano, entre 7 de Novembro de 2005 e o final de Outubro de 2006 (como documentam os cadernos onde aponta tudo: a evolução do trabalho, as metas, as dúvidas, os esboços das notas).

"Foi uma loucura total, uma experiência difícil de explicar e que poucas pessoas poderão compreender", diz a tradutora. "Mesmo passado um ano e picos, ainda não retomei a minha vida normal. Ainda não fui ao cinema, por exemplo." Para conseguir cumprir o prazo draconiano proposto pelos editores (única forma de garantir um apoio financeiro vindo de Itália), Margarida Periquito viveu numa espécie de reclusão monástica.

A sala de trabalho, no segundo andar de uma das ruas mais calmas do bairro da Penha de França, em Lisboa, era a sua cela. "Passava a vida aqui, em média dez horas por dia, às vezes 16. Não tinha sábados nem domingos. Não gozei uma única folga. Não saía de casa nem para ir ao café. Não lia jornais para não me distrair. No máximo, espreitava dez minutos do Telejornal. O ano de 2006 para mim foi como uma espécie de retiro."

A alimentação também era frugal. "Ia lá dentro à cozinha, comia uma lata de atum, um bocado de pão com queijo, uma peça de fruta. Preocupada, a minha irmã aparecia de vez em quando com um prato de sopa." Chegada a hora de desligar o computador, mal conseguia endireitar-se: "O meu corpo ficava com a forma da cadeira." Atirando-se para a cama, no quarto mesmo ao lado, o trabalho prosseguia durante o repouso nocturno: "Cheguei a acordar e a tomar notas, porque uma palavra que me falhava de dia surgia-me no sono."

O segredo do sucesso na "empreitada", mesmo assim interrompida duas vezes (para traduzir um livro de Dino Buzzati e curar uma crise de cólicas renais que durou mais de um mês), esteve na disciplina "espartana". Feitas as contas, Margarida Periquito impôs-se uma meta diária: traduzir 20 oitavas (estrofes de oito versos), das 4842 que compõem o longo poema. "Se num dia só conseguia fazer 18, no seguinte obrigava- -me a chegar às 22." E fazia todas as noites o seu exercício de "contagem regressiva", ganhando ânimo com a ideia de que o fim estava um bocadinho menos distante.

Quando terminou a última oitava, respirou de alívio mas foi incapaz de parar. Além de prosseguir a revisão do texto com um amigo, iniciada uns meses antes, atirou-se logo a um romance de Pirandello. "Estão sempre a surgir-me desafios irrecusáveis e que se encadeiam uns nos outros", assume a tradutora, que vive sozinha e não goza férias há cinco anos.

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