A Longa Pandemia

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Apenas uma vida dedicada ao próximo é digna de ser vivida"
Albert Einstein

No passado dia 5 de Maio, Tedros Adhanom Ghebreyesus, Director-Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) proclamou o fim da pandemia, anunciando, com uma referência expressa à "esperança" e uma alusão implícita a uma expectativa benigna: "É portanto, com grande esperança que declaro o fim da COVID-19 como uma emergência de saúde global."

A proclamação não causou surpresa, pois surgiu na sequência de múltiplos sinais nesse sentido, nomeadamente, a reunião do Comité de Emergência da OMS, de 27 Janeiro de 2023, a declaração do presidente norte-americano que em 2022 anunciou o fim da pandemia, a reversão ocorrida na generalidade dos países das medidas tomadas aquando do auge da pandemia e, em Portugal, a revogação da única medida então em vigor (relativa à obrigatoriedade do uso da máscara facial nas instituições de saúde) a 17 de Abril do ano corrente.

Curiosamente, o fim da pandemia coincidiu com a comemoração do "Dia Mundial da Higiene das Mãos", lembrando a importância decisiva das medidas de intervenção não-farmacológicas (incluindo o uso da máscara, a etiqueta respiratória, a higiene das mãos e o distanciamento social) no controlo da Covid-19 previamente à criação e administração das vacinas à escala global.

Criadas as vacinas assistimos à maior campanha de vacinação de sempre, iniciada a 8 de Dezembro de 2020, no Reino Unido, e com mais de 13 mil milhões de doses de vacinas administradas globalmente, vacinas essas que obstaram a milhões de infecções, complicações, hospitalizações e mortes e permitiram o desfecho da pandemia. A título de exemplo, um estudo do Imperial College London estima que as vacinas tenham salvo cerca de 20 milhões de vidas aquando do seu primeiro ano de utilização.
Em Portugal, a vacinação teve início a 27 de Dezembro de 2020, tendo sido administradas 27,7 milhões de vacinas. A 14 de Abril de 2023 foram contabilizadas 274 doses de vacinas por 100 habitantes, um valor que coloca Portugal em lugar cimeiro à escala global. A nível internacional, a média foi de 168 doses por 100 habitantes, com uma diferença significativa entre os países de maior rendimento (225 vacinas por 100 habitantes) e de menor rendimento (40 vacinas/100 habitantes).

Finda a campanha de vacinação confirma-se a segurança vacinal, documentada que está em centenas de estudos publicados nas principais revistas científicas, permanecendo a sua monitorização contínua igualmente assegurada pelas Agências Regulamentares. A propósito de segurança vacinal, note-se que as vacinas protegem única e exclusivamente contra a Covid-19 pelo que a população, na grande maioria vacinada, continua a viver a sua vida, com as vicissitudes inerentes, adoecendo e morrendo, nos mesmos moldes em que tal sucedia antes da pandemia. Isto é, não há obrigatoriamente uma causalidade entre uma qualquer manifestação que surja e a toma da vacina. Por esse motivo, nos registos da vigilância e monitorização das vacinas consta que reacções ainda que com uma proximidade temporal à administração vacinal não têm necessariamente uma relação causal.

Voltando ao comunicado da OMS, que espoletou esta reflexão, constatamos que esse comunicado emergiu ao fim de 3 anos, 1 mês e 25 dias, mais precisamente 1151 dias, ou seja, após uma pandemia revestida de uma duração assustadora e inesperada em pleno século XXI, que revelou fragilidades globais e que teve um impacto incontrolável a nível social e económico para a Humanidade.

A pandemia funcionou, pois, como catalisador de mudanças, umas negativas e outras positivas. Com efeito, a Covid-19 levou, entre outras coisas, (i) a um aumento das desigualdades sociais e económicas entre pessoas, povos e raças (tema que nos deve merecer toda a atenção na sua resolução), (ii) a uma maior sensibilização para as alterações climáticas (iii) a um significativo impulso na interacção online para fins comerciais, de teletrabalho, de telemedicina etc. e (iv) à compreensão da importância da ciência e do conhecimento na fundamentação das decisões e no desenvolvimento civilizacional, que se traduziu, na área da saúde, no reconhecimento e valorização dos profissionais de saúde e dos serviços de saúde, da inovação técnica e farmacológica (como as vacinas) e da medicina personalizada.

O mais pesado legado decorrente exclusivamente da pandemia corresponde ao longo Covid ou à condição pós-COVID-19. Por longo Covid entende-se a persistência de sintomas (encontrando-se descritos mais de 200 sinais e sintomas) com, pelo menos, 2 meses de evolução e não explicados por outros motivos em indivíduos com infecção, provável ou confirmada, por SARS-CoV-2 há mais de 3 meses. Na prática, significa a incapacidade de retorno ao estado de saúde prévio à infecção pelo SARS-CoV-2.

De acordo com os últimos dados da OMS, estima-se que o longo Covid ocorra em cerca de 6% das pessoas com infecção sintomática. A nível mundial este número poderá corresponder a pelo menos 46 milhões de pessoas. Em Portugal, admitindo-se que a generalidade dos 5,6 milhões de casos correspondem a infecções sintomáticas, o número relevante poderá corresponder presentemente a cerca de 336.000 pessoas.

O longo Covid representa, inequivocamente, um complexo problema de saúde no plano global, caracterizado por um acréscimo de morbilidade e de sobrecarga dos serviços de saúde, pela diminuição da capacidade produtiva e da qualidade de vida das pessoas afectadas e por um aumento das ajudas sociais e económicas dos serviços de previdência e do estado social.

E certo que a prevalência do longo Covid foi diminuindo ao longo da pandemia na sequência da gravidade da infecção e, sobretudo, das variantes predominantes e do estado vacinal. De facto, com a Ómicron o risco de evolução para longo Covid parece ter reduzido em 50 a 70% em relação à estirpe original do coronavírus (Universidade da Califórnia, EUA), estimando-se que 4 tomas de vacina, prévias à infecção, reduzam o risco de evolução para longo Covid em 95% e que de 3 tomas sobrevenha uma redução de 85% (British Medical Journal).

Acresce que após o primeiro ano, mais de 70% de pacientes com longo Covid referem melhoria. Contudo, menos de 15% apresentam resolução total das queixas, sendo as queixas mais persistentes a fadiga e as alterações neurológicas. Embora estejam em curso vários projectos de investigação e ensaios clínicos ainda não existe um tratamento específico para o longo Covid.

As pandemias são um teste à nossa capacidade de resposta em comunidade, num quadro em que as opções são tomadas de acordo com a melhor evidência disponível e com vista a preservar e a salvaguardar o bem comum, a saúde e a integridade da população -- o todo, em pandemia, que se sobrepõe à soma dos interesses individuais.

A pandemia cessou, continuando, não obstante, a ser sentida por muitos, em particular, pacientes com longo Covid, os quais beneficiariam de uma abordagem estruturada e multidisciplinar que garantisse as melhores ferramentas na resolução desta nova e ainda pouco conhecida doença.

Em face da complexidade e multidisciplinaridade das queixas, associada à premência da investigação e à procura dos melhores resultados para os doentes, a par de uma utilização mais racional e sustentável dos recursos de saúde, consideramos que deveriam ser estabelecidos (i) um Programa Nacional com Centros de Referência, idealmente integrados em redes multicêntricas internacionais, e dedicados ao seguimento e monitorização de doentes com condição pós-COVID-19 e (ii) tal como noutros países, uma Associação de Doentes com longo Covid que dê voz a esta nova realidade.


Nota: Os autores não escrevem de acordo com o novo acordo ortográfico.

Filipe Froes é Pneumologista, Ex-Coordenador do Gabinete de Crise para a COVID-19 da Ordem dos Médicos e Membro do Conselho Nacional de Saúde Pública

Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge

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