A Linha de Cascais vista por duas mulheres singulares
Branca de Gonta Colaço e Maria Archer foram duas portuguesas de grande envergadura, cultas, liberais, dessas que elevam a densidade cultural de um país. Foram esquecidas sem razão, mas um livro encontrado por acaso num dos melhores alfarrabistas de Lisboa, Eduardo Martinho, no Mercado de Santa Clara, desvendou-me como era a costa de Lisboa a Cascais no primeiro terço do século XX. O pretexto da sua interessante crónica foi o comboio, inaugurado em 1890, competindo com os vapores de rodas e os carrões.
A estrada marginal é hoje uma via rápida com uma das mais belas vistas da Europa, mas tem mudado muito. Já Maria Archer e Branca de Gonta Colaço se lamentavam de como iam sendo cortados os pinhais, se iam edificando casas, hotéis, vivendas, que iam mudando a paisagem, e nem sempre para melhor. A sua sensibilidade estética e os seus conhecimentos, a sua forma de ver as coisas, é imensamente atual e apropriada para estes tempos onde parece que a única razão económica é construir mais e mais.
A leitura de Memórias da Linha de Cascais (Parceria António Maria Pereira, Rua Augusta, 44 a 54, Lisboa, 1943) é muito amena, pois está bem escrito. Contém uma pormenorizada documentação sobre as propriedades e as famílias que iam adquirindo terrenos ou que ali estavam desde antes do século XIII, sobre os edifícios públicos e privados e as diferentes paisagens que ainda se podem ver do comboio.
Os usos e a toponímia (ribeira das Marianas, praia do Juncal!) foram mudando. Na sua época ainda recordavam os vinhedos de Carcavelos, esses que entre Oeiras e Cai-Água foram arrasados pela filoxera nos finais do século XIX. Também nos falam com detalhe do incipiente desenvolvimento urbanístico e turístico nesses anos que ainda continua e praticamente liquidou todos os espaços livres e verdes desta costa. Se as autoras vissem como está hoje!
Do Estoril dizem-nos, por exemplo:
Um pinhal selvagem gemendo soturnamente sobre um chão de areia, hastes curvadas pelas nortadas vagabundas, pelos temporais do oceano. Um céu coruscante de luz e cor, um mar de fascinação...
Era o que se dizia aqui há poucos anos, em Lisboa, desse trecho paisagístico cortado pela estrada de Cascais, na época em que o Estoril ainda não atraía veraneantes nem turistas.
Falam-nos dos fortes (São João dos Maias, Arieiro, Catalazete, Santo António da Barra, Poças, etc.), esses fortes que "cruzavam os fogos" - bela expressão - protegendo a enseada, a Torre do Bugio no ilhéu de Cabeça Seca, que marca o fim do Tejo, dos palácios, das águas curativas,
São João, antigamente, era também. reputado pela virtude das águas da Poça. Águas excelentes para doenças de pele e reumatismos.
Evocam a história (Wellington, Gomes Freire executado na torre do Forte de São Julião, de Beresford) e até a geologia, as grutas pré-históricas e as furnas, a Boca do Inferno ("escavada pelo mar nas rochas silúricas", dizia o escritor e engenheiro espanhol Juan Benet na sua crónica de viagem a Portugal em 1966 (Ilusitania, Revista de Occidente). Contam-nos histórias de personagens ilustres e literários, como é o caso das citações de Os Maias, do almirante Nunes da Mata que queria preservar a paisagem e protestava infrutiferamente contra o excesso de edificação. Curioso o dado de que os Castro Guimarães, que ajudaram o infante D. Manuel, irmão de D. João V, com uma letra de câmbio por 16 mil cruzados a pagar por comerciantes judeus de Amesterdão (ou seja, portugueses).
Como expressa muito bem o seu título, esta obra é um verdadeiro inventário de todo este território, um livro de há 80 anos que evoca a época de Eça de Queiroz e que traz vida, sentido e significado ao território contíguo a Lisboa. É, sem o pretender, um discurso contra o turismo de massas que tem vindo a destroçar as nossas costas, mais em Espanha do que em Portugal. Merecia ser reeditado como guia de culto para as nossas excursões de fim de semana, e servir-nos-ia para apreciar no seu devido valor isto que temos ao lado, pleno de história, de personagens, para que o cuidemos e restauremos.
Escritor espanhol