A juventude, as jornadas mundiais: espiritualidade ou espectáculo?
Foi do agrado do poder político que se realizasse a Jornada Mundial da Juventude em Portugal, repartida, esta conglomeração da Igreja Católica, por dois locais simbólicos: Lisboa e Fátima. Nada tenho contra esta manifestação religiosa, sobretudo quando tal reunião é dirigida aos jovens. Nada tenho contra o organigrama deste certame, com diferentes modalidades de inscrição, diferentes pacotes consoante a permanência dos peregrinos em Lisboa e as possibilidades financeiras de cada grupo. Nada tenho contra o kit do peregrino. Agrada-me até a ideia - pragmática, comercial, económica, utilitária - de haver preços em conformidade com os dias (e as noites) de permanência; preços que vão dos 255 (o Pacote A1+8 Agosto - inclui alimentação, transporte, desde a noite de 31 de Julho à manhã de 8 de Agosto, com pequeno-almoço incluído) aos 100 euros.
Porque é impossível não escapar ao lado mercantil que tudo isto encerra (os olhos de Carlos Moedas brilham de felicidade ao falar dos ganhos para a capital e o país) pergunto-me sobre a questão da espiritualidade nesta 3.ª fase da nossa Modernidade. Deus, desde a Querela dos Antigos e Modernos, desde a Revolução Francesa e da Revolução Industrial, onde habita, onde está? Da I Guerra Mundial a Auschwitz, de Hiroxima à Cibernética e à Inteligência Artificial, onde está o Espírito? Para além do niilismo triunfante e dos seus rostos polimórficos (consumismo, alienação, tédio), na sociedade dos espectáculos, nem mesmo a mais nefanda ou legítima Razão Instrumental garante o sentido. Tudo é hoje decidido no mercado mundial das sensações e, atolados na Net, no Digital, mesmo os defensores da urgência do Espírito sabem que só resta este Nada vestido de cores berrantes e ululando a alegria de se estar vivo. É um grande Nada que, em bom rigor, sacrifica a meditação em nome da eficácia publicitária. Assim se diz que a Eclésia existe.
Nesta Jornada haverá tempo, lugar e vontade para reflectir sobre o mundo em que os jovens vivem? Para além das palavras da praxe de Francisco, ter-se-á vontade de discutir o porquê da Igreja no quadro mais vasto e complexo da secularização de tudo? Que Igreja é esta depois do Iluminismo e do Kantismo? Como viver Cristo depois do primado do "pensar por si mesmo"? Se hoje as questões mais básicas da Razão Crítica e da Razão Prática ("Que posso eu saber?", "Que posso eu esperar?" "Que devo eu fazer?") não se colocam - como viver Deus? Haverá forma de, cá para fora, dar-se a ideia (ao menos a ideia!) de que há uma juventude que responde à dessacralização interrogando-se sobre para onde vai a Humanidade? No fundo, perguntar-se-ão: "Deus e o Espírito estarão hoje onde?" É que na cultura secular, laica, televisiva, digital; nas democracias cada vez mais entregues à mera dialéctica do débito-crédito das trocas (tudo e todos nas operações de venda e de aquisição), esta Jornada da Juventude deveria agitar as consciências. Mais que propaganda de uma instituição em crise, a estes jovens caberia o papel de pensar a Igreja na sua humanidade e agitar as consciências.
Os cerca de 1,5 milhões de peregrinos que terão oportunidade de viver a sua fé nos três palcos construídos para o efeito, estarão eles conscientes de que, para quem vê de fora, tudo isto nada mais é que um grande negócio? Num país de salários indignos, que oração pode melhorar a vida de quem mora e paga contas em Portugal? É simbólico, e por isso extremamente significativo, que o palco a Oriente venha a suster 2 mil pessoas ao mesmo tempo (mil bispos, 300 concelebrantes, 200 membros de coro, 90 músicos de orquestra, 30 tradutores, restante pessoal técnico), numa espécie de festa das massas que rezam... Onde fica o Espírito? Onde a humilitas e a gravitas que o Papa Francisco valoriza?
No mundo-festival em que sobrevivemos, na Europa em guerra, dispensam-se as lágrimas de contrição. E dispensa-se bem aquela atmosfera de fraternidade toda abraços e beijos, padres-nossos e êxtases desejando-se "feliz dia!" ao irmão ou à irmã, em jeito de selo católico. Bom seria que a Igreja pudesse inspirar, de facto, no combate à pobreza, que exigisse o perdão total da dívida do 3.º Mundo. Bom seria que a Igreja não se calasse em face da corrupção desenfreada, da fome. Erradicasse a pedofilia, condenasse sem pejo o racismo, a violência sobre as mulheres e os velhos.
Condenasse, alto-e-bom-som, os ricos cada vez mais ricos... Seria outro mundo... Saberão estes jovens porque Deus está longe de África? Há muitos milhões que não podem desejar "feliz dia!" porque há muito que não têm dias felizes. Jovens: onde está uma educação para o Espírito?
Sugestão de livro: Homo Deus (tradução de Bruno Vieira Amaral)
Autor: Yuval Harari
Editora: Elsinore, 2015.
Sinopse: Nestes dias de JMJ, eis um livro que o leitor poderá, numa qualquer livraria, adquirir com facilidade. Publicado em 2015, o autor colocava, nesse tempo pré-pandemia e pré-guerra da Ucrânia, como horizonte possível e próximo da Humanidade quer a erradicação da pobreza, quer o fim da guerra. O ideal deste nosso século reside na tentativa de vencer a morte. Erradicar a mortalidade, eis o fito. Pois bem, Harari é hoje um dos mais destacados críticos da IA, tem avisado sobre os malefícios do digital e desta "cegueira tecnológica" que a tudo imprime a lógica do frenesim, do superficial e do lucro fácil. Homo Deus é, para fiéis e não fiéis, um livro essencial até para se poder negar uma das mais evidentes teses deste historiador, professor na Universidade de Jerusalém: o Homem é o criador único.
Professor, poeta e crítico literário.