"A justiça como arma na luta política", destaca Leonor Beleza

Presidente da Fundação Champalimaud prefacia o livro de Daniel Proença de Carvalho que será apresentado esta tarde, em Lisboa. No capítulo "a viagem infindável com a justiça" o autor recorda a acusação à ex-ministra da Saúde.
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Este livro, que o autor designa como um Testemunho, é também um contributo para a nossa compreensão coletiva do Portugal de hoje e da necessidade do que chamamos "reformas".

Daniel Proença de Carvalho é para mim o arquétipo do que julgo ser um Advogado - pela formação, pela independência, pela tenacidade, pela cultura, pelo apego à liberdade, pelo brilho e argúcia pessoais, pela dedicação muito preparada com que argumenta e defende aquilo em que acredita. Dono de uma rara experiência na prática da advocacia, traça aqui, através da descrição de uma série de casos exemplares, uma espécie de percurso das insuficiências da justiça criminal em Portugal ao longo do século xx.

O Autor não vê essas falhas, essas insuficiências, esses abusos, afinal, como o padrão. Pelo contrário: como nos conta, viu inúmeras vezes os agentes serem diligentes e imparciais, agirem de boa-fé, tomarem decisões adequadas. Mas identifica e permite-nos compreender a infeliz permanência de fatores de fraqueza e de prepotência, que correlaciona com regras e práticas que precisam de ser questionadas.

O livro não é apenas sobre a nossa justiça. E não é porque, através dela, e dos casos que nos relata em pormenor, apreendemos a sociedade que essa justiça serve, o seu percurso, as suas transformações. Mas também não é só sobre a justiça porque o Autor nos deixa impressivos retratos de outras áreas em que se envolveu, da política à comunicação social. E ainda porque, tendo vivido, com grande intensidade, em múltiplas posições de observação privilegiadas as grandes mutações da parte final do século passado, nos oferece descrições lúcidas do que viu e do que compreendeu sobre processos e personagens.

Se Daniel Proença de Carvalho é tão intensamente o Advogado, também é muito mais do que isso. E o livro revela sucessivamente os vários momentos do Cidadão exemplar, que enfrentou pelos seus clientes os excessos da ditadura, os desvarios do PREC e os abusos em democracia, que se envolveu em lutas políticas pela liberdade - e pelas Justiça, política, comunicação social, liberdades -, e aceitou cargos arriscados que punham à prova as suas capacidades e a sua coragem. Percebemos por estes relatos, e eu conheço diretamente pelo que vivi, que o Autor se arrisca pessoalmente por aquilo em que acredita, que enfrenta as dificuldades com consciência dos perigos e que efetivamente pagou um preço em perseguições e processos. Cada uma das histórias, e cada uma dessas perseguições, é em si exemplar. O conjunto, com a repetição sistemática de meios de intimidação, revela a coragem do Cidadão, a intensidade das convicções e a inabalável fidelidade ao papel de advogado.

Estes relatos são particularmente ricos na caracterização que através deles apreendemos sobre os abusos do poder durante a ditadura, quando Daniel Proença de Carvalho era um jovem jurista cheio de fé no poder do Direito - também por aí passei eu própria -, e sobre os abusos mais ameaçadores ainda durante a fase aguda da revolução. A leitura dessas páginas não tem apenas a virtude de relembrar vivamente e em detalhe momentos e factos que os mais velhos podem recordar. Também intensifica e aprofunda a perceção de como são violentos os regimes não-democráticos e de como se traduzem no espezinhar efetivo de direitos em nome de mitos e de mentiras.

A justiça é uma área particularmente vulnerável nesse contexto; é fácil transformá-la em arma na luta política de aniquilamento dos adversários.

Tudo isso é mais difícil de compreender, e de aceitar, numa sociedade democrática, de liberdade e de respeito pelos direitos. E, no entanto, até em democracia a justiça pode perversamente constituir meio de luta política, de eliminação de protagonistas e de sujeição a atropelos, lugar até de criação insensível de intolerável sofrimento.

Estas questões, neste livro tão bem retratadas, interpelam-nos a todos, e são muito perturbadoras. Como é que, apesar da superioridade que vemos na nossa democracia, apesar do arsenal de direitos e dos meios de os exercer, apesar de a generalidade dos agentes se conter dentro dos limites e de respeitar os outros, podem ocorrer desvios e abusos, prolongados e repetidos? Como é que agentes privilegiados do sistema de justiça que o Estado criou e mantém para nos proteger a todos se podem aqui e ali comportar como autores de perseguições e destruidores da liberdade e da reputação? Os problemas resultam do desenho das regras, ou apenas de errados comportamentos individuais?

O que temos de fazer? Como podemos criar proteções contra o abuso e a prepotência do Estado?

Para mim, é um privilégio deixar aqui este prefácio. Não sou só a amiga e admiradora do Autor que fala. Fui e sou também devedora de uma generosidade sem limites, e personagem de uma das histórias aqui contadas em pormenor.

Li, detidamente, repetidamente, as páginas todas que se seguem, antes de escrever estas linhas.

Devo confessar que as vezes que li, entre outras, a parte que me diz respeito, me lembrei de coisas que já tinha esquecido, ou que quisera esquecer, e voltei a sentir todo o sofrimento, todas as humilhações e, sim, toda a revolta pelo que passei naqueles anos.

Mas tudo isso não me fez perder, pessoalmente, nada de essencial, ou até de muito importante.

Na verdade, considero-me uma privilegiada. E os meus privilégios também estão hoje ligados a outra pessoa relatada neste livro como vítima de um processo exemplar: António Champalimaud.

Pergunto -me, às vezes, se o meu destino está conexionado com esta singular partilha...

O Autor discorre na parte final sobre a relação entre a política e a justiça. E explica lucidamente como é que a afirmação da distância pode ser afinal virtualmente enganadora, e até perigosa.

Agradeço muito a Daniel Proença de Carvalho ter decidido voltar a todas estas experiências e, através delas, lucidamente, alertar para os perigos da indiferença e do consumo acrítico de informação.

Uma perseguição injusta pode afinal acontecer a qualquer um, a qualquer das pessoas que nos são queridas. É um privilégio ser-se então defendido por um Advogado como Daniel Proença de Carvalho.

Sobretudo, orgulho-me de O ter como Amigo.

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