A internacional cosmopolita
O pessimismo tem tomado conta das nossas conversas e os sinais de alarme são suficientemente sonoros para não inquietar a mais empedernida alma cosmopolita. O purismo identitário reafirmou-se como mantra do nacionalismo político, em receitas discursivas de sucesso eleitoral que misturam perigosamente protecionismo económico, xenofobia e concentração de poder.
Já não estamos na fase em que partidos de nicho espalhados pelas democracias ocidentais chegavam com alarmismo aos parlamentos ou condicionavam, pontualmente, uma qualquer coligação governamental. Hoje, temos chefes de governo e presidentes eleitos com base numa grelha disruptiva, agressiva, intolerante, autoritária e iliberal. E temos partidos políticos que, à esquerda e à direita, foram cristalizando por décadas um espaço de governação, mas que, de uma forma ou de outra, têm sido tentados a encostar aos flancos na esperança de agarrar o discurso da identidade agressiva captado pelos extremos. Juntemos-lhe a erosão do poder, a deterioração institucional provocada por escândalos de corrupção e uma morosidade angustiante em adaptar as funções do Estado às novas dinâmicas da economia internacional e das sociedades abertas, e encontramos o plano perfeito para a vitória dos antissistémicos.
Ao contrário do que muitos têm afirmado, as várias matizes do populismo nacionalista estão a crescer mais por demérito dos partidos cosmopolitas do que por uma súbita arte e engenho dos figurões que os encabeçam. É claro que o nacionalismo, ainda por cima popular, chega com relativa facilidade a milhões de pessoas, ricas e pobres, com mais ou menos educação, imigrantes ou não, laicas ou religiosas. Foi a transversalidade deste mercado eleitoral que explicou a vitória de Donald Trump e fintou as análises mais habituadas a uma segmentação excessivamente clássica dos eleitorados. Mas a transversalidade também existe no campo adversário, o qual pode pragmaticamente irmanar milhões de eleitores em função de uma agenda simultaneamente reativa à ascensão dos nacionalistas e comprometida com valores e políticas cosmopolitas.
Parto do princípio de que o pessimismo continua a ser uma virtude analítica se fizer soar campainhas no espaço público no modo e no tempo certos. Mas chega uma altura em que só isso não chega. A campanha para as presidenciais francesas está a mostrar que há espaço suficiente para reinventar a fórmula de combate ao nacionalismo, à cristalização partidária e ao desencanto pela política. O sucesso ou o fracasso desta receita irá definir o sucesso e o fracasso da União Europeia depois das presidenciais francesas, porque o que resultar daqui irá definir o futuro da Europa. É em França que se decide o destino de todos nós.
Sem surpresa, Marine Le Pen mantém uma primazia constante nas sondagens. Aliou um entendimento sobre a transversalidade do mercado potencial de novos eleitores (comunistas, imigrantes, classe média-alta) a um carisma distinto do seu pai, ao contínuo financiamento russo e a fatores exteriores não menos benéficos, como a institucionalização de uma autêntica internacional nacionalista. Além disso, reforçou-se com as receitas eleitorais geminadas no Reino Unido e nos EUA, além do declínio público de alguns dos seus concorrentes diretos: por cada processo judicial a Sarkozy ou a Fillon, milhares de eleitores aderem à narrativa antissistémica de Le Pen.
Os socialistas preferiram um aparelhista de braço dado com os sindicatos e com uma agenda irrealizável (Hamon), punindo Valls pela lealdade ao presidente mais impopular do pós-Guerra. Os republicanos optaram por um conservador clássico de discurso identitário a encostar à Frente Nacional (Fillon) em detrimento de um outro menos marcado ideologicamente (Juppé). Ambos os partidos abriram uma multidão ao centro que não só define qualquer vitória presidencial num sistema a duas voltas, como exponencia um mercado potencial de eleitores convocados a assumir compromissos renovados com a democracia num tempo em que a sua natureza plural e liberal está ameaçada.
E assim surgiu Emmanuel Macron, que não só agradeceu aos militantes socialistas terem derrotado Valls, como aos republicanos terem terminado com as aspirações de Juppé. Macron, com uma agenda pós-esquerda/direita, mas aberta a todos os cosmopolitas de esquerda e de direita, sobretudo jovens entusiasmados com o corte geracional que ele protagoniza, com o reformismo económico e laboral que já tinha marcado a sua passagem pela pasta da Economia, com a sua defesa da UE e da globalização institucionalizada, com o seu compromisso por atração de cérebros e investimento estrangeiro, dando a França um papel na economia internacional do futuro, e com uma posição assertiva sobre a adequação do modelo económico às alterações climáticas.
Macron não usa o discurso negativo contra adversários, não traz pessimismo à campanha, fatalismo à França, cinzentismo às propostas. Prova, sim, que passando à segunda volta é quem tem as melhores condições para protagonizar uma "frente republicana" contra Marine Le Pen. Se o fizer, terá feito a Europa respirar de alívio até às eleições alemãs de setembro, dando uma legitimidade renascida a uma França perdida no xadrez continental e a uma agenda política assente num cosmopolitismo de sucesso.
Não é por acaso que Moscovo já o identificou como alvo a abater pela sua artilharia propagandística. Para Putin, só interessa uma UE desmembrada, e Le Pen é quem garante isso. Muita sorte, Macron.