A Índia de Moçambique

Bhaves Trambaclal<br /> Maputo, Moçambique<br /> 1965-1984<br /><br />
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Para os amigos, ele é o Beto. O nome verdadeiro, no entanto, é bem mais difícil de pronunciar: Bhaves Trambaclal, moçambicano de origem indiana e rosto de um dos mais míticos restaurantes do lisboeta Bairro Alto, o Calcutá.  O homem tem sorriso fácil, gira pelas mesas todas, fala com toda a gente da mesma maneira. «Uma pessoa é produto das pessoas que o rodeiam», explica e assim percebe-se porque se deu tão bem na vida. Quem haveria de imaginar que aquele rapaz que cresceu nas ruas de Lourenço Marques estaria agora em Lisboa, a gerir sozinho o segundo restaurante da cadeia que montou com os irmãos?
O dia é 7 de Março de 1975. Bhaves apressa-se a chegar a casa depois das aulas da manhã. É meio-dia e está calor. O atalho que sai das traseiras da escola vai dar directamente ao portão da sua casa e ele percorre as centenas de metros rapidamente. A família Trambaclal fez da casa um Vici, restaurante informal que serve comida vegetariana aos trabalhadores que imigraram da Índia – alguns das antigas colónias portuguesas, outros que vieram substituir os quadros técnicos portugueses que abandonaram o país por altura da independência moçambicana. Como os hindus não comem carne, confiam neles para cozinhar as suas refeições desde 1968.  Sentem-se em casa naquela pequena habitação na Baixa de Lourenço Marques, na Avenida 5 de Outubro, actualmente Avenida Josina Machel. Hoje o almoço vai ser complicado. Jasvantibai Vanmali, a mãe, está no hospital com contracções. Ele sabe que, sem a matriarca,  o trabalho será a dobrar.
A irmã Ina espera-o na cozinha e há que servir os clientes que todos os dias, sem falta, vão a sua casa almoçar. Bhaves está apreensivo, com dez anos é a primeira vez que vai para a bancada amassar apas, o pão tradicional que é cozinhado na frigideira. Depois ainda terá de servir toda a gente. A mesa da casa só dá para dez pessoas e costumam comer ali cerca de vinte, diariamente. Há clientes à espera na rua. O rapaz larga a pasta com cadernos e livros e apressa-se a ajudar a irmã. Antes de regressar às aulas recebe a notícia que tem mais uma irmã e com um sorriso que lhe sai fácil corre pelo atalho até à escola. Está um bocadinho atrasado.
A família Trambaclal  tem raízes na Índia portuguesa. O pai de Bhaves, Trambaclal Aracchande, nasceu em Diu em 1920 e nos anos quarenta partiu para Moçambique, em busca de uma vida melhor. Trabalhava como cozinheiro perto do porto de Lourenço Marques e, desde que abriram o Vici,  fazia as compras de comida para casa. A mãe só chegou em 1961, com o primeiro filho – Suresh, então com um ano – nos braços. Bhaves, o terceiro de uma prole de oito, já nasceu em Lourenço Marques. A família pertence à casta Vânia, predominantemente constituída por comerciantes e mercadores, mas Bhaves não ligava a isso, tinha amigos de castas diferentes – quase exclusivamente indianos – e tratavam-se todos por igual.

Jogar bola com fruta
Frequentava desde os sete anos uma escola só para indianos onde aprendia a cultura hindu e o alfabeto Gujarat. Mas o miúdo só conseguia pensar no final das aulas, às 18 horas, quando podia fazer o que mais gostava, jogar futebol com os amigos do bairro da Baixa. Descalços, a bola feita de trapos e o campo feito de terra, a baliza feita de pedras. Começou como Eusébio, a bola era uma massava, fruta comestível que «possuía uma casca tão forte como a carapaça de uma tartaruga». Não durava um jogo inteiro, acabava sempre por partir-se, mas crescia nas árvores já ali à distância de um braço. Bhaves e os amigos jogavam até às nove da noite, altura em que tinham de voltar a casa, tomar banho e dormir. E a dormir, Bhaves sonhava com uma vida melhor.
O seu tio Babu já tinha avisado a mãe quando Bhaves tinha quatro anos, «esse miúdo vai ser o futuro da vossa família». Com 14 anos, Bhaves foi viver para Vila Pery, a actual Chimoio, na província de Manica, com o tio, onde começou a gerir a sua loja, uma casa que vendia roupa. Ao fim de pouco tempo, Babu já não se preocupava com a boutique, sentia que estava em boas mãos. Ali, o rapaz aprendeu a trabalhar com dinheiro e a administrá-lo eficientemente. Ao fim dos três anos com o tio, Bhaves regressou a casa da mãe.
Foi então que fundou com os amigos Zakir e Jayesh o Disco Club, um clube de futebol indiano. Participavam nos campeonatos contra as equipas muçulmana e ismaelita. Tinham uma conta bancária para as despesas com três assinaturas e até um tesoureiro, que recebia as cotas dos sócios. O seu irmão mais novo, Hiren, pertencia à claque. Inspirados na selecção portuguesa utilizavam até o nome dos jogadores de cada posição, Bhaves era Humberto Coelho. E nos tempos áureos chegaram a organizar três dias de férias para a equipa toda em Bilene, aventura que nunca mais esqueceriam.

A caminho de Lisboa
A vida, no entanto, estava a tornar-se cada vez mais difícil em Moçambique. A guerra civil trazia insegurança e racionamento de comida. Então, em 1984, Bhaves partiu para Lisboa. Encontrou trabalho no armazém de um supermercado e as suas qualidades de gestor evidenciaram-se. Dois anos depois, conseguiu que a família toda viesse para Portugal. Viviam 12 pessoas numa casa no Martim Moniz , as mulheres no quarto-despensa, os irmãos na sala, o mais velho no quarto – com a mulher e as duas filhas – e o pai no hall de entrada. Em 1995 conseguiram uma casa maior, com quatro quartos e a família respirou de alívio.
Em 1998 Bhaves e os irmãos abriram um restaurante indiano no Bairro Alto, o mítico Calcutá. Suresh na cozinha, Hiren como relações-públicas e Bhaves como gestor. Não podiam ter escolhido melhor altura para começar o negócio – e a sorte ia crescendo ao mesmo ritmo que a animação nocturna da zona. Em apenas quatro anos estariam a abrir o Calcutá 2 e, em 2008, outro restaurante em Picoas.
Bhaves ainda se emociona quando relembra os tempos de criança em Moçambique, as tardes tranquilas e descontraídas de Lourenço Marques, o prato de Aloo Mater (um caril de batatas com ervilhas) que a mãe confeccionava no Vici da Avenida 5 de Outubro. Espera a altura certa para voltar com a mulher, Surekha Rameniquilal, moçambicana que conheceu em Portugal, e com os filhos de ambos. E, entretanto, vai continuando a servir o caril, as apas, o tandoori. Essa é afinal a sua história, o seu sangue – na Índia, em Moçambique, em Portugal.

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