A Índia, as castas e o poder

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Os historiadores dificilmente entram em acordo sobre a data rigorosa da invasão da Índia pelos arianos. Sabe-se que há milhares de anos a conquistaram, impondo a sua lei e a sua ordem, depois de dominarem as populações locais. Foram eles que lançaram as pedras basilares da essência da cultura que impregna as profundezas da raiz civilizacional indiana. As normas então impostas têm força milenária e ainda hoje subsistem em vários locais, muito embora nem sempre sejam bem visíveis a olho nu como outrora.

Os detentores do poder ariano, com a insofismável chancela dos sacerdotes, inventaram e impuseram o famoso mito da criação da humanidade, baseado na existência do sistema de quatro castas, brâmanes, xatrias, vaixás e sudras, com definição de funções para cada uma delas: aos brâmanes competia ensinar o Veda e sacrificar; aos xatrias, proteger o povo e estudar o Veda; aos vaixás, trabalhar; aos sudras, servir; sendo os brâmanes e os xatrias as castas dirigentes. Proibiram o casamento entre pessoas de castas diferentes e colocaram fora do sistema os estrangeiros e os vencidos, ou seja, os párias ou intocáveis, ainda hoje designados em muitos locais de dalits. Para suporte desta filosofia de dominação criaram o conceito de transmigração, segundo o qual, quando um indivíduo morre, morre apenas o seu corpo, mas o espírito liberta-se do corpo e transmigra em função dos actos praticados durante a sua vida, integrando-se num outro invólucro que tanto pode ser de natureza humana, como zoológica, botânica ou mineral, reiniciando assim um novo ciclo de vida. As punições podem traduzir-se de diversas formas como, por exemplo, na integração da alma do morto em tigre, mosca, estrume, etc.

Quem nasce já nasce com o seu karma, que é uma espécie de cadastro moral, consequência natural das transmigrações anteriores. Assim, o melhor ou o pior renascimento está directamente ligado ao karma individual, sendo imutável a sua condição durante toda a vida, pois quem nasce pária, permanece e morre pária. Porém, a condenação não é eterna. Qualquer condenado pode melhorar a sua sorte sofrendo milhentas transmigrações até poder vir a atingir a imortalidade com a libertação definitiva da cadeia dos renascimentos.

Foi com base nesse mito que se praticaram atrocidades durante milénios contra a maior parte da população, os harijans, e, segundo se afirma, os abusos continuaram em alguns locais da Índia em pleno século XX. Eles não participavam do regime de castas e, por serem considerados impuros, eram excluídos do convívio social. Conforme se fez acreditar, o seu contacto manchava as pessoas, o hálito empestava os locais por onde passavam, a presença poluía e ofendia aqueles que a eles próprios se tinham incluído no sistema das castas.

Nesse sistema de castas da Índia milenar, os brâmanes eram intelectuais por excelência, mas gostariam de ser também nobres e aristocratas como os xatrias. Por sua vez, os xatrias invejavam nos brâmanes a sua capacidade intelectual, os seus conhecimentos religiosos e a influência que detinham como sacerdotes, conselheiros e legisladores. Embora estas duas castas parecessem defender interesses contraditórios, na prática formavam uma parelha unida em defesa dos seus interesses comuns. Se a definição da ideologia pertencia aos brâmanes, o braço armado para a impor pela força incumbia aos xatrias. A eles se deve o atraso da Índia, considerado na sua globalidade, durante milénios.

No passado distante, uma das vias utilizadas pela população desfavorecida para a sua emancipação foi através da conversão ao islamismo e cristianismo. Com a independência da Índia em 1947 e a abolição do perverso sistema de castas em 1950, tudo ficou resolvido mais no papel do que na realidade.

Se no presente a Índia é apontada como uma potência mundial, é porque as castas ditas inferiores, e aqueles que não faziam parte do sistema das castas, aproveitaram a abertura política, social e económica e, remando contra a maré, com o seu perseverante esforço, têm vindo a concorrer para engrandecer aquele país e introduzir a democracia na verdadeira acepção da palavra.

*Historiador

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