A independência irónica de Paul Verhoeven
Está quase a chegar o IndieLisboa: a 13.ª edição do Festival Internacional de Cinema Independente de Lisboa decorrerá de 20 de abril a 1 de maio, tendo hoje à noite uma festa de antecipação no Liceu Camões, com música a cargo das bandas Ninaz e Pega Monstro (23.00); antes, é exibido o filme RoboCop, o Polícia do Futuro (1987), de Paul Verhoeven, o cineasta holandês neste ano homenageado como um dos "heróis independentes" do certame (21.30).
Convenhamos que os tempos mudaram. E que a celebração de Verhoeven como paradigma de "independência" constitui uma ironia de que os organizadores do IndieLisboa serão, por certo, os primeiros a ter consciência. No limite, a proposta merece ser saudada pelo modo como nos obriga a repensar os lugares-comuns que servem para classificar a atividade cinematográfica (com o aval dos mais preguiçosos discursos jornalísticos, sem dúvida).
É provável que a maioria dos espectadores que, agora, celebram a virginal independência de figuras como Verhoeven não tivesse sequer nascido quando ele surgiu, no coração de Hollywood, a dirigir essa fábula distópica sobre um polícia cruel, meio humano meio máquina, que é RoboCop. O certo é que circulavam muitas dúvidas, éticas e ideológicas, sobre o facto de alguém que simbolizava os autores europeus e a sua independência "natural" (um cliché como qualquer outro...) surgir a assinar uma tão típica produção hollywoodiana.
Verhoeven teve a sagacidade de passar da "arte" europeia para a "indústria" dos EUA mantendo a ligeireza de quem vê o cinema como um exercício mais ou menos lúdico, impulsivo, de pueril provocação. Ainda na fase holandesa, o seu filme mais famoso, Delícias Turcas (1973), centrado numa love story mais ou menos escatológica, foi o símbolo fundador do seu estilo - uma espécie de versão caricatural de O Último Tango em Paris (1972), sem a densidade perturbante do original, mas capaz de ecoar as convulsões de usos e costumes da época (entre nós, no pós-25 de Abril, foi um dos fenómenos das novíssimas salas do Quarteto, sob a direção de Pedro Bandeira Freire).
O gosto de espetáculo de Verhoeven enraíza-se numa espécie de reconversão paródica da aliança sexo & violência que, na altura, balizava muitas discussões sobre as fronteiras do cinema (ainda hoje não saímos desse simplismo). Aliás, antes da integração no cinema americano, ele já assinara o épico medieval Amor e Sangue (1985), bem típico de tal visão. Reforçou-a logo após RoboCop, com Total Recall/Desafio Total (1990), transformando um conto de Philip K. Dick numa espécie de ópera bufa abrilhantada pelo inimitável Arnold Schwarzenegger.
Sharon Stone & etc.
Seguiu-se Instinto Fatal (1992), o filme que fez de Sharon Stone uma estrela, ao mesmo tempo que comprometeu para sempre a sua carreira - ser reduzida pela imprensa mais frívola de todo o planeta àquela "que abria as pernas" não é coisa simples. Bem sabemos que Stone pode ser admirável (veja-se Casino, de Martin Scorsese, lançado três anos mais tarde), mas nada disto acontece de forma inocente.