A incansável euforia báltica

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A decisão portuguesa de não se deslocar a Malmö teve, como seria de esperar, algumas repercussões na minha rotina báltica. Falamos de um país de 1,3 milhões de habitantes, mas, mesmo assim, não haverá um único estónio que tenha entendido o alcance da opção sufragada pelo Palacete de São Bento.

"Mas como é que é possível que Portugal tenha desistido de participar na Eurovisão?", insistia a minha esposa, Age Viira. Tão doméstica ladainha agravou-se logo após as finais nacionais de fevereiro, quando, invariavelmente, de Murmansk a Iraklio, começa a contagem decrescente para o apogeu de maio.

Fosse no Bonaparte Kohvik, fosse no Hell Hunt (o "meu" pub de Tallinn), logo percebi que não estaria mais a salvo. A pergunta atravessava-se-me.

Para uma mente báltica era, é, será, absolutamente impensável não competir na Eurovisão. A sua revolução, a sua independência, foi sempre cantada. Foi assim que na segunda metade do século XIX despertaram uma consciência nacional, após setecentos anos de dominação sobretudo germânica. Foi com as canções que as três repúblicas bálticas assinalaram, em agosto de 1989, a sua vontade de romper com a União Soviética num cordão humano nos seiscentos e muitos quilómetros que separam Vilnius de Tallinn.

Doutra forma: desistir de participar numa final da Eurovisão é dar razão ao sequestrador, chamam-lhe "síndrome de Estocolmo" por alguma razão, e abdicar sumariamente, de enfiada, do orçamento para os ministérios da Defesa, dos Negócios Estrangeiros e da Cultura em simultâneo.

A ajudar à festa, a esta euforia eurovisiva permanente, um rebuçado que a Europa deu às repúblicas bálticas nos alvores deste milénio. Estas coisas não são por acaso: a Estónia sagrou-se vencedora em 2001 e, no ano seguinte, foi a vez da Letónia. Uma dobradinha com impacto, não viesse ela relembrar-nos a música como arma de intervenção e de afirmação da soberania e do orgulho nacionais. Um desabafo, no entanto: ambas as canções são em inglês e bastante sofríveis. Medíocres mesmo. Diria mesmo que inaudíveis (Everybody e I Wanna, respetivamente).

Este é, no entanto, um pormenor inexpressivo.

A Estónia está em Lisboa para ganhar. Não duvidem. O concurso doméstico foi terrível, mas Elina Nechayeva é uma cantora lírica respeitada. La Forza tem força. Sente-se um certo burburinho no Báltico, as notícias sucedem-se. Há vertigem. Um invulgar tesão. "Sei que é um pouco tonto, mas sinto-me um bocadinho privilegiada por estar aqui neste momento", confessou-me a minha esposa ontem ao pousar a sandália nas escadas rolantes do Centro Comercial Vasco da Gama. Olhar para os vidros da Altice Arena e para todos aqueles cartazes todos do All Aboard! dão-lhe uma adrenalina que para mim, fã confesso da Eurovisão e 16 anos mais velho do que ela, ainda me é impossível vislumbrar.

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