A importância de salvaguardar a memória
Morreu ontem, dia 12, o arquiteto Hestnes Ferreira. Filho do poeta José Gomes Ferreira, Raúl José Hestnes Ferreira era já um dos últimos representantes de uma geração nascida nas décadas de 1920 e 30 que trouxe para a arquitetura portuguesa não só uma outra visão do que se fazia lá fora como uma atitude crítica, marginalizada, como lhe chamaria Portas, do que podiam ser outras formas de trabalhar.
Marginalização que no caso de Hestnes passa quase sempre por um percurso muito autónomo, seja nas linguagens que emprega, seja nos materiais que usa, seja nos programas a que se dedica, ou na coerência ideológica que sempre o ligou a obras e regiões com as quais se sentia identificado.
Com uma longa atividade ligada ao ensino. Primeiro no Porto e depois desde a fundação do curso de Coimbra, foi contemporâneo dos já desaparecidos Pedro Vieira de Almeida, José Santa-Rita, Vítor Figueiredo ou Alcino Soutinho, mas também dos ainda ativos, como Bartolomeu Costa Cabral, Francisco Silva Dias, Nuno Portas ou Álvaro Siza, entre muitos outros. Toda uma geração de excelentes profissionais cuja atividade se desenvolveu a partir da década de 1950, entre os anos finais da ditadura e as primeiras décadas do regime democrático.
Distinguido com diversos prémios para obras tão distintas como a recuperação de uma arcada do século XVI no centro histórico de Beja, cujo plano ele também desenvolveu, a remodelação do Museu de Évora, ou a recuperação do hoje, já quase esquecido, Café Martinho da Arcada e uma menção honrosa do Prémio Valmor em 1980 pela Escola Secundária de Benfica. Foi ainda distinguido com um dos prémios Nacional de Arquitetura em 1982 e com o Prémio AICA em 1993.
Como reconhecimento da sua importância na arquitetura nacional, a Ordem dos Arquitetos distinguiu-o ainda no Dia Nacional do Arquiteto em 2014 e com o estatuto de membro honorário em 2010, "pelo papel relevante na afirmação da arquitetura portuguesa, bem como pela sua atividade no âmbito do planeamento e desenho urbanos, assim como da habitação social como arquitetura da cidade".
A última vez que estive com ele, no final do último novembro, foi a seu pedido para nos informar e lamentar toda uma série de alterações que têm estado a ser impunemente feitas nos edifícios do importante conjunto do ISCTE em Lisboa.
A melhor forma de homenagearmos a sua memória e sobretudo o valor da sua obra seria parar com esta prática generalizada e gratuita de destruirmos a coerência de edifícios, na maior parte dos casos para a sua pura e simples alteração com adaptações avulsas e casuísticas que destroem a identidade de cada obra.
Talvez agora, com um outro reitor na instituição, tal seja possível. Afinal, estamos a falar de uma sucessão de edifícios feitos entre 1976 e 2002, duas vezes distinguidos com o Prémio Valmor, uma menção honrosa em 1993 e o prémio em 2002, num reconhecimento público e camarário de uma qualidade indiscutível.
Bom seria que este facto servisse de exemplo para uma prática que nos últimos tempos se tem tornado bastante generalizada com alterações feitas em obras que são testemunhos importantes do nosso património recente e de uma memória que todos deveríamos ter a preocupação em salvaguardar.