A importância da civilização
Numa série inesquecível produzida pela BBC no final dos anos sessenta do século passado, Sir Kenneth Clark apresentou uma perspetiva pessoal sobre a Arte e a Cultura na história humana sob a designação de "Civilização". Quem hoje vê ou revê o testemunho filmado ou lê a obra que publicou, compreende como a criação cultural constitui a espinha dorsal da história humana. No primeiro programa da série, o lugar donde parte é a Ponte das Artes em Paris, vendo-se numa das margens do rio Sena a fachada do Instituto de França, datada de 1670, e na outra margem o Louvre, referência de uma continuidade arquitetónica clássica, construída desde a Idade Média até ao século XIX. Em fundo, a Catedral de Notre-Dame constitui um exemplo dos mais equilibrados e rigorosos na representação do estilo gótico. O lugar não foi escolhido por acaso, já que pretendia ilustrar a vitalidade da cultura humana e recordar todos quantos, artistas, escritores ou pensadores, ao longo dos séculos, procuraram sentir na travessia dessa ponte a exigência da vida, do saber e do gosto.
Assim, quando falamos de valores humanos, de dignidade, de memória e de respeito pelas diferenças, chegamos à importância da Civilização. É difícil uma definição, mas somos levados a reconhecê-la como realidade. E Ruskin afirmou: "As grandes nações escrevem as suas autobiografias em três manuscritos, o livro dos seus factos, o livro das suas palavras e o livro da sua arte. Nenhum destes três livros pode ser compreendido se não lermos os outros dois, mas dos três o único digno de confiança é o último". E Kenneth Clark procurou demonstrar, ao longo de treze capítulos da sua reflexão, como a ideia de Civilização corresponde à complexidade humana, a partir da aprendizagem, da criatividade e do que designamos como desenvolvimento. Contudo, a história da civilização não é apenas a história da arte, há diversos fatores que devem ser considerados e que se influenciam mutuamente. Quando hoje nos deparamos com a consciência ecológica, com a transição climática, com os novos desafios energéticos ou com a evolução científica, designadamente no campo da saúde e da vida, e com o progresso no campo digital, tomamos consciência que a humanidade está confrontada com a necessidade de preservar a liberdade e a justiça. Considerando os efeitos da crise financeira, da pandemia e da guerra, somos levados a pensar numa cultura de paz, de modo a construir uma sociedade centrada na dignidade humana. Como reafirmou Francis Fukuyama, há pouco entre nós, a democracia liberal acredita que a dignidade tem de ser protegida pelo estado de direito, de modo a limitar o poder dos governos de modo a não violar e a proteger os direitos das pessoas. Eis por que a Civilização pressupõe um caminho de confiança, um equilíbrio nos poderes públicos e privados e a defesa do bem comum, já que a ilusão do mercado livre sem limites gera desconfiança, descontentamento e desigualdade.
Voltamos a Kenneth Clark, a propósito da confiança, e ao poema, que cita, de Kavafis À Espera dos Bárbaros, sobre a cidade antiga de Alexandria que esperava o dia em que ocorreria uma invasão dos bárbaros, solução para o cansaço e o desalento. Mas nada aconteceu e as pessoas ficaram dececionadas, pois teriam preferido ter um motivo para renovar a confiança e contrariar a indiferença. Oiçamos a bela versão de Jorge de Sena: "E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças / e todos voltam para casa tão apreensivos? / Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram. / E as pessoas que chegaram da fronteira / dizem que não há lá sinal de Bárbaros. / E agora que vai ser de nós sem os Bárbaros. / Essa gente era uma espécie de solução". De facto, a Civilização obriga à permanência nos valores, na coesão e nos objetivos - para contrariar o cansaço, a decadência e o colapso de tantas sociedades...
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian